Cushion, 1993

Frida Baranek – DENTRO/FORA

POR MARC POTTIER Artista brasileira, mas cujo playground é o mundo, autodidata, Frida Baranek adora desafios e confrontar a diversidade e as transformações que a vida oferece. A exposição Dentro/Fora, na Galeria Hugo França, em Trancoso, é uma fantástica oportunidade para descobrir como a artista, desde 1984 até hoje, conseguiu criar uma obra escultórica “anti-forma” […]

POR MARC POTTIER

Artista brasileira, mas cujo playground é o mundo, autodidata, Frida Baranek adora desafios e confrontar a diversidade e as transformações que a vida oferece. A exposição Dentro/Fora, na Galeria Hugo França, em Trancoso, é uma fantástica oportunidade para descobrir como a artista, desde 1984 até hoje, conseguiu criar uma obra escultórica “anti-forma” que abraça em sua intimidade as evoluções de uma vida nômade que a levou do Brasil aos Estados Unidos, passando por vários países europeus. Aquela que sempre se sente meio por dentro e meio por fora, soube fazer a vida circular através das suas obras.

“Quando as atitudes se tornam formas”

A exposição DENTRO/FORA é uma exposição que tem como objetivo mostrar a trajetória de uma artista que teve que, e que quis montar seu ateliê nos quatro cantos do mundo, desde sua primeira exposição individual na Petite Galerie no Rio, em 1985, até hoje, morando entre o Brasil e Portugal. Olhando para a sua obra num inventário ‘à la Prévert’, chama atenção a grande diversidade de materiais utilizados, numa obra essencialmente escultórica (tela de aço galvanizado, acrílico, vidro e metal; sobras de materiais como alumínio, tubos de cobre, varetas de vidro, corda de sisal, verniz de carro de efeito camaleão sobre fibra de vidro, arames de aço, chapa, látex, pedras, madeiras…) e vêm à mente as imagens da exposição “referência”: “Quando as atitudes se tornam formas”, que o grande crítico suíço Harad Szeemann organizou na Kunsthalle de Berna em 1969. Na obra de Frida Baranek, os seus gestos parecem ter precedência sobre a obra. Suas esculturas, sem base, diretamente no chão, evocam os artistas italianos da Arte Povera. Pois há um aspecto “não fixo” nelas, como se fossem evoluir ao longo do tempo e espaço nos quais são exibidos.

Anti-Forma

Frida poderia perfeitamente ter feito parte do movimento American Anti-Form do final dos anos 1960, com uma obra escultórica flexível, por vezes beirando o perecível. Pensamos nas reflexões do grande artista americano Robert Morris (1931-2018) que questionou sobre o papel da matéria na determinação da forma final. Na esteira de Georges Bataille, que defendeu a noção de ‘sem forma’ e o seu poder de rebelião contra o desejo de impor uma ordem às coisas, Robert Morris criticou a escultura ocidental que, segundo ele, sempre submeteu a matéria a uma ordem que é externa a ela. Frida Baranek segue sugerindo, o contrário, ou seja, valorizar a matéria, mostrando-a como ela é, aproveitando as suas imperfeições e até acompanhando a sua tendência para a entropia. Falando de seus mentores, Frida cita a artista americana de origem alemã Eva Hesse (1936-1970) que levou ao auge a revalorização da matéria e de suas qualidades.

Tanto nas obras de Eva Hesse como nas da Frida Baranek, as suas esculturas nunca param de falar de suas autoras, das suas angústias, das suas obsessões, das suas vidas com múltiplas experiências. Sob a simplicidade das aparências das formas, a autobiografia brilha de inúmeras maneiras. A variedade de materiais utilizados não serve para a construção de volumes perfeitos, lisos e simétricos, mas para a fabricação de objetos totêmicos carregados de reminiscências de vidas lançadas.

Ma Memoire, 1998

Assim como Frida Baranek, os materiais que ela utiliza, sabem se transformar

“Na minha visão de mundo, tudo está constantemente se transformando, se adaptando. Sou uma pessoa com uma capacidade enorme de adaptação. Penso sempre em entropia, em física, em poesia. Gosto da sensação de ver alguma coisa que provoca que eu entre dentro de mim mesma, e quando sinto isso, me estimula e me completa. Para isso acontecer, uma nova relação emocional tem que ser estabelecida. Eu comecei a criar situações assim desde o começo da minha carreira, onde eu transformava situações para poder sentir essa conexão. Essas situações são materiais, relacionais”, explica a artista.

Uma obra sem limites definidos, onde se desenrolam as incertezas

“Sou autodidata, me sinto sempre à margem de alguma coisa, nunca pertenci completamente, meio dentro e meio fora. Estudei arquitetura e desenho industrial, arte aprendi e aprendo só com olhar e leitura. É um privilégio ser artista, ter o dom de criar alguma coisa do nada, uma vida cheia de desafios. O espaço, o tempo e a percepção me interessam, a nossa presença no mundo. Essa presença é relacional, todas as relações são importantes. As relações não são só físicas, são emocionais também. E nesse espaço relacional que eu existo e trabalho, sem limites definidos, com incertezas.” Confidencia a artista quando questionada sobre como ela se define. “Eu estava no segundo ano da faculdade de arquitetura no Brasil e percebi que meus projetos eram menos estruturados, e comecei a ter um desejo enorme de fazer esculturas. Comecei a frequentar alguns ateliês e desenvolvi um trabalho paralelo ao da arquitetura. Com o passar do tempo, senti a necessidade de ser completamente livre, sem regras impostas. Quando me formei, fiz uma aplicação para um mestrado em escultura na Parsons School of Design em NY e entrei. Foi nesse momento que decidi que iria por este caminho “, ela completa.

Dentro/Fora

Na experiência corporal da qual normalmente temos consciência, a separação entre interior e exterior, entre “eu”, “minha alma” e “o mundo”, parece pré-estabelecida. Os objetos, os outros, estão lá “fora”, diferentes de nós que estamos aqui, com nossas percepções, emoções e pensamentos que parecem localizados “dentro”. Esta separação entre mundo objetivo e mundo subjetivo, longe de ser algo alcançado, pode ser o resultado de uma evolução. Esta exposição coloca a questão, a do processo de separação dos polos, subjetivo e objetivo vivido como uma experiência de permeabilidade que a artista pode vivenciar e depois oferecer ao público. A vida de Frida Baranek a levou pelas estradas do mundo, primeiro como estudante de arte entre o Rio, São Paulo, Paris e os Estados Unidos, depois como esposa seguindo um marido jornalista em Paris, Berlim, Nova York e Londres, e finalmente como uma mãe com dois filhos que agora moram em Madrid e Washington DC… A cada vez ela teve que se adaptar, acomodar a família, para só depois reconstruir seu ateliê ao mesmo tempo que desvendava novas culturas. Esta exposição mostra as suas repetidas experiências de escuta, com a construção de um ‘Dentro’ a partir daquilo que sempre vem de ‘Fora’. Esta exposição, através de um percurso de obras criadas ao longo de mais de 30 anos, mostra a dissolução de fronteiras, associada a uma transformação do sentido de identidade da artista. É na dimensão sentida desta experiência, que está na fonte dos seus pensamentos, que a sua relação original com o mundo parece desenrolar-se. Nesse processo, sujeito e objeto, dentro e fora, e os pontos de referência que costumam ajudar a estruturar o mundo, perdem sua solidez, sua rigidez e tornam-se cada vez mais leves. Dentro/Fora mostra como as obras de Frida Baranek, num espaço mental desobstruído, permitem a respiração, e que a vida circule.

“Meu trabalho está dentro de mim, e levo-o para onde quer que eu vá”

“Gosto de aprender, de desafios e experiências. Em cada lugar eu vivi vidas e situações distintas. Mas aí tinha sempre o novo, tanta coisa para ver pela primeira vez, me comunicar em outras línguas etc. Como artista, eu tinha que continuar a trabalhar sempre, estabelecer um novo ateliê, um novo network de pessoas, adaptar a minha família etc., isso me fez ser quem eu sou hoje. Foi sempre estimulante, surpreendente, intenso e interessante. No fundo eu sinto que a minha obra está dentro de mim, eu a levo aonde vou, que as experiências que eu vivo estimulam esse interior que é intuitivo e inquieto”, especifica a artista. Para nos ajudar a entender melhor do que são feitas suas obras, ela comenta ainda: “Esse senso de liberdade eu sempre tive, sim talvez venha do meu DNA. Além disso, a coragem. É importante sentir coragem, dá uma força incrível na vida. Estrutura você, da segurança. A minha mãe sobreviveu ao holocausto, eu respirei desde que nasci, a resiliência, a coragem e a inteligência da sobrevivência. Não e que não estou presa a nenhum lugar, porque quando estou num lugar eu vivo intensamente, completamente, me adapto e fico muitos anos. E mais a curiosidade e o senso de oportunidade que me atraem, a noção de que tudo pode mudar a qualquer momento, que não temos controle de nada, só das nossas decisões. De qualquer maneira, um lugar é só o espaço para ser, existir, e quando alguma coisa não está bem, podemos sempre modificá-la. Essas forças opostas, a vulnerabilidade e incerteza estão sempre presentes no meu trabalho, fazem parte da minha vida”.

Diluvianamente, 2014

Os títulos das obras como marcas dos momentos vividos pela artista

“No início da minha carreira eu não dava títulos às obras, mas com o tempo, algumas confusões aconteceram porque as obras eram todas sem título e de materiais similares. Percebi que tinha que criar os títulos para facilitar. Então decidi que os títulos seriam sempre relacionados à experiência interior que eu estava vivendo, estimulados também pelo que estava lendo naquele momento e o que estava acontecendo no mundo. Os títulos são marcas do meu tempo, de um lugar, e do momento que eu estou vivendo”, suas reflexões continuam nos ajudando a compreender melhor seu universo Dentro/Fora. Por exemplo, a obra “Fronteira” de 1996, foi feita quando ela subiu a Torre Eiffel em Paris e esfregou o metal da torre com a tela. Trazida depois para o Brasil, montou a obra que é apresentada na exposição de Trancoso. Se referindo a obra “Ma memoire 98”, Frida nos confia: “Tive minha filha em 97, e esse título veio da sensação de que eu estava perdendo a memória, por causa do cansaço, pois não dormia muito naquela época” … “Wald – 2002 – as obras dos armários, surgiram em Berlin, o espaço psicológico dentro de um espaço. Este título é em alemão, e eu morava na Waldmeister strasse. Cada armário lembra uma casa que tive” … “Balance – 2004, a sensação de ‘juggling many aspects in life’, trabalho, família etc. um equilíbrio delicado” … “Mudança de jogo – 2014, me divorciei e vivia esta questão do poder dentro de uma relação. E a imprevisibilidade da vida” … “Uncertainty relations – 2017, as relações incertas, que se modificam, onde não temos controle. No meu trabalho crio essas relações entre materiais que são simbióticas, dependentes para estarem ali daquela maneira, nunca por uma razão meramente decorativa. Sempre exercendo uma função” … “Liminality – 2019, essas obras foram o resultado da experiência do voo de gravidade zero que fiz em 2018. Senti esse espaço liminal, a aceleração dos corpos” … “Displacement – 2024, os deslocamentos, a transformação e as mudanças fazem parte da minha vida e consequentemente a sensação de não pertencer, de estar à margem. Nem sempre é uma sensação ruim, porque também possibilita novas descobertas”.

Liminality VII, 2019

Uma artista que sempre esteve ‘no lugar certo, na hora certa’

Embora Frida Baranek tenha uma carreira internacional impressionante, ela nunca esqueceu as suas origens. O ateliê que mantém no Rio de Janeiro permite que ela não rompa os laços. Ela continua muito ligada ao mundo da arte brasileira e com grandes amizades com artistas que são a base da arte brasileira. Mesmo que a vida a tenha levado ao ‘Fora’ do Brasil, ela sempre terá sido ‘Dentro’. Recomendada pelo querido amigo de longa data, Cildo Meireles, deve-lhe a primeira exposição individual em 1985, na Petite Galerie, local pioneiro da época das vanguardas defendidas pelo famoso ítalo-brasileiro Franco Terranova (1923-2013).

Sempre com apetite por um pensamento livre

Exterior I e II, 2009

Frida fala sobre os artistas que marcaram sua carreira: “Tive a sorte de estudar com a Lygia Pape na faculdade (a irreverência, a atitude). Ela era uma pessoa com convicções fortes e sempre me falava para acreditar nelas, o João Carlos Goldberg, no Parque Lage, e com o Tunga, no MAM, por um pequeno período (Tunga era um pensador livre, com uma imaginação incrível, uma conexão quase que esotérica, intuitiva). O Cildo Meireles tem sido uma presença fixa na minha vida desde os meus 20 anos. Me identifico muito com a obra da Lygia Clark… Tanto a Clark como a Hesse experimentaram. Sempre me conectei com essa experimentação, com as matérias e as pessoas, a transcendência. A Louise Bourgeois e o espaço psicológico, e a história dela. Quando meus filhos eram pequenos era difícil, e repetia sempre para mim mesma que a Louise ficou sem trabalhar um tempo porque teve três filhos, mas aos 50 voltou e isso era super ok. Me dava esperança…”

Frida Baranek produz trabalhos com ressonância profundamente pessoal, tecidos a partir de suas próprias memórias. Ela reivindica total liberdade, num trabalho inteiramente voltado para a exploração de si mesma. Podemos vivenciar a exposição Dentro/Fora como o diário íntimo de uma artista feminina (com todas as dificuldades que isso ainda representa) que se nutre de todas as influências das culturas em que ela esteve imersa. Mas a artista nunca é prisioneira de referências, Dentro/Fora é a história de uma vida que ela nos convida a compartilhar na Galeria Hugo França em Trancoso.

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