Foto por Edouard Fraipont

Conversa com a artista: Maria Fernanda Paes de Barros

“Quando voltei da aldeia Kaupüna, no Xingu, resolvi mergulhar mais fundo na história da minha família para entender como me senti “tão em casa” em um local tão desconhecido e diferente do meu dia a dia habitual”

Maria Fernanda Paes de Barros explora as conexões entre arte, design e cultura indígena em Entre Nós, mostra em cartaz na Galeria White Box do Hotel Rosewood; confira a entrevista com o curador Marc Pottier:

POR MARC POTTIER

Como você se define? 

Me defino como uma mulher sem fronteiras.  Eu sou muitas. Sou aquilo que me dá vontade de ser. Não costumo parar para pensar o que sou, não sinto a necessidade de um nome. Às vezes nomes são como molduras, nos enquadram em determinado contexto, nos privando da liberdade de viver de forma mais fluida. Talvez uma boa definição seja, eu sou livre. 

De onde vem a sua relação com o design e como define o design?

Minha relação com o design vem desde os 18 anos, quando resolvi comprar pranchas de madeira no extinto Peg & Faça e criei estantes e uma escrivaninha para o meu quarto. Sem me dar conta iniciava minha interlocução com o design de interiores, área em que trabalhei por mais de 20 anos. Em 2014, durante um curso de design de mobiliário, entendi o design como uma maneira de mudar o mundo e comunicar minha forma de enxergar as relações. Nesse mesmo ano criei a Yankatu e comecei minhas viagens pelo Brasil e a pesquisa e desenvolvimento de projetos com artesãos e povos indígenas.

Para mim o design vai muito além da estética e da função, antes de tudo, o design existe para criar soluções. Ele impacta não apenas o consumidor final, através do produto criado, mas também todos aqueles envolvidos nesta cadeia produtiva. Mais do que pensar no produto, é preciso que tenhamos um olhar que passa pela coleta da matéria-prima, por questões sociais de cada comunidade e, mais importante, pelas relações humanas que são criadas, desenvolvidas ou afetadas a partir da nossa interação. Por isso, para mim, o design é uma ferramenta de transformação com extrema responsabilidade social.

De onde vem a sua relação com a cultura indígena? O que significa para você?

Acho que deve ser de vidas passadas, pois nessa minha conexão com eles só despertou em 2014, quando fui convidada pelo professor do curso de design de mobiliário a responder o que significava “prazer” para mim, e naquele momento me “vi” em uma aldeia, na Floresta Amazônica, rodeada pela natureza e pelos sorrisos das crianças indígenas enfeitadas com suas artes.

Quando voltei da aldeia Kaupüna, no Xingu, resolvi mergulhar mais fundo na história da minha família para entender como me senti “tão em casa” em um local tão desconhecido e diferente do meu dia a dia habitual. Descobri que foram meus antepassados, Fernando e Arthur Paes de Barros, que em 1734 descobriram e batizaram as minas de ouro de Mato Grosso. 

Talvez seja esse o significado, meus antepassados encontraram o ouro (metal nobre), mas não enxergaram a verdadeira riqueza imaterial da região, as vidas e culturas indígenas. Hoje eu, cerca de 290 anos depois, refaço esse caminho de outra maneira, reforçando a importância dos povos indígenas e suas diferentes culturas e buscando abrir cada vez mais espaço para que sejam reconhecidos e valorizados.

Você tem uma relação forte com escritura (poesia?). Nessa exposição quer mandar um recado, recados? Qual?

Talvez a resposta esteja no trecho de um dos poemas que escrevi, inspirada pelo livro Banzeiro Òkòtó – Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo, de Eliane Brum:

“Talvez a única saída seja resetar o ser humano, fazê-lo voltar à essência. Torná-lo novamente capaz de enxergar a riqueza do arco-íris, ao invés de viver em uma constante busca pelo pote de ouro. Uni-lo em uma luta capaz de recuperar as cores do mundo.”

Sim, é isso, quero resetar o ser humano.

Como chegou o conceito da exposição na WhiteBox do Rosewood?

A princípio você havia me pedido para apresentar peças de design que fizessem parte da decoração do Rosewood, de forma a criar um link com o fato da minha presença na galeria do hotel, e a partir delas apresentar minhas inúmeras possibilidades e minha conexão com os povos indígenas. 

As peças que estão no hotel fazem parte da coleção Alma-Raiz, de 2019 e Filhos da Terra de 2021. Estamos em 2025 e muita coisa aconteceu desde que elas foram criadas. A pergunta central passou a ser então como apresentar tantas obras, com diferentes povos, materiais e mensagens, de uma maneira que fizesse sentido. Era preciso um fio condutor que ligasse tudo isso. Nasceu assim a ideia do branco como elemento de conexão.

A partir daí reescrevi as peças que hoje fazem parte do hotel usando a palha sem tingimento, os fios brancos ou crus, as penas claras, criando obras exclusivas, especialmente para o evento. Daí, como não consigo parar de criar, acabaram nascendo duas instalações (em rede e nós) e uma coleção de mesas de apoio (mosaico).

De certa forma acho que apresento minha “travessia” do design à arte sempre com foco no impacto social.

O nome da exposição tem um duplo sentido. É sobre as travessias solitárias e conjuntas, sobre os encontros, sobre partidas e chegadas, sobre a foça do conjunto. E é também sobre liberdade, sobre desatar nós, desamarrar a alma de convicções pré-estabelecidas que se fixam em nosso ser sem ao menos sabermos de onde vieram. Enfim, talvez mais uma vez meu poema fale melhor por mim:

“Parto de um mundo em branco,

para tornar mais visível a união de saberes.

Para deixar claro quem sou, quem são, quem somos.

Para transbordar a força e a delicadeza que coexistem

no respeito entre culturas,

na harmonia entre histórias,

na confluência de vidas.

Ato e desato nós,

Nos atos e nos desato,

nos uno e nos reúno

e convido a todos a fazerem parte dessa rede,

que não prende nem arrasta,

que fortalece cada um e reconhece a força do todo,

que nos liberta e busca libertar também o futuro

do cativeiro onde permitimos que ele fosse colocado.”

Maria Fernanda Paes de Barros, Entre Nós
Hotel Rosewood, White Box
De 26/3 a 19/5/2025
Curadoria do Marc Pottier

Marc Pottier é francês, radicado entre o Brasil e a França, é curador internacional de arte contemporânea, especializado em arte em espaços públicos. Ele também está envolvido com plataformas digitais culturais, televisão e webtv. Hoje é curador da Usina de Arte, um parque de esculturas perto de Recife, pertence ao Núcleo Curatorial do MON (Museu Oscar Niemeyer) em Curitiba e é o coordenador internacional para a elaboração do projeto de futuro Museu de Arte Contemporânea de Foz do Iguaçu, com o coaching do Centre Pompidou

Confira fotos da exposição:

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