Belos livros: Hélio Oiticica. Parangolé, Entre révolte et poésie, editado por Vittoria Mieli (Mousse Publishing)

POR MARC POTTIER Por ocasião da magnífica monografia publicada em três línguas por Vittoria Mieli, na Mousse Publishing, Hélio Oiticica.  Parangolé, Entre révolte et poésie, publicamos o prólogo assinado por Marc Pottier. Os Parangolés, capas-esculturas, delírio ambulatorial de Hélio Oiticica (1937-1980), produzidos entre 1964 e 1979, unem arte com vida, improvisação com orquestração. Eles convidam […]

POR MARC POTTIER

Por ocasião da magnífica monografia publicada em três línguas por Vittoria Mieli, na Mousse Publishing, Hélio Oiticica.  Parangolé, Entre révolte et poésie, publicamos o prólogo assinado por Marc Pottier. Os Parangolés, capas-esculturas, delírio ambulatorial de Hélio Oiticica (1937-1980), produzidos entre 1964 e 1979, unem arte com vida, improvisação com orquestração. Eles convidam você a descobrir o corpo. Essas obras, entre a gravidade e a leveza, ato gratuito disfarçado de afirmação de compromisso político, incorporam a revolta política à poesia. Eles pedem a participação do público, que também se torna, de fato, um artista.

Sob o título, Les parangoles d’ Hélio Oiticica où l’utopie incarnée d’une révolte par la poésie, o prólogo de Marc Pottier mergulha nessa “obra antropófaga”; situa o contexto histórico e artístico enquanto engole os movimentos Dada, Fluxus, Arte Povera (…) no coração dos desafios do Novo Realismo que ela agita para instalar novas formas de dança, acontecimentos e performances. A grande genealogia de um país que viu nascer Hélio Oiticica, Lygia Clark e tantos outros “revolucionários” de formas e conteúdos conceituais alimenta essa utopia que leva a uma arte coletiva total, uma obra de choro, situações a viver que glorificam o efêmero.

“Essa marginalidade à margem de tudo com surpreendente liberdade, produziu com esses Parangolés uma poética de natureza fluida e incerta (princípio da incerteza de que fala Deleuze). Contra a petrificação da vida cotidiana, ele se reinventou constantemente, dando mais eficácia a uma ação estética transitória onde o inacabado não tem nenhum tipo de importância”, aponta Pottier.

Folhas

“Um sentido ‘suprassensorial’ da vida, a transformação de processos artísticos em sentimentos vitais”.

Por volta de 1964, o jovem artista Hélio Oiticica (1937-1980) virou as costas para sua família burguesa e intelectual carioca para conviver com a comunidade do Morro da Mangueira (que é até hoje uma das principais escolas de samba do Carnaval do Rio). Aquele que muitas vezes era visto como um decadente, um paranoico (ou um fumante de cannabis), sempre teve a coragem de suas convicções. Ele nunca hesitou em derrubar as mesas do conformismo para dissecar as  inervações  do definhamento de nossa civilização e abrir caminho para sua revitalização. Foi nessa favela do Rio que ele inventou seus primeiros Parangolés, abandonando as tradições plásticas ocidentais para se lançar de cabeça na experiência do movimento, do gesto e da sensualidade. Oiticica revisita à sua maneira a eterna questão da morte da pintura.

“Conheça-me através do que eu faço.

Porque eu realmente não sei quem eu sou.

Porque se é uma invenção, eu não posso saber.

Se eu já soubesse o que seriam essas coisas, elas não seriam mais uma invenção.”.

Hélio Oiticica

O Paralangolé, uma arte coletiva total

Seus Parangolés são capas, estandartes ou bandeiras, montados sem ordem preconcebida, muitas vezes muito coloridos, onde às vezes aparecem frases com conotações reivindicativas. Os participantes-atores são convidados a manuseá-los, usá-los ou colocá-los. Longe das obras penduradas na parede de um museu ou galeria, sua arte agora se confunde com o corpo liberado que dança. É, sem dúvida, sua proximidade com as escolas de samba que intensificou,  em Hélio Oiticica, a ideia de uma arte coletiva total.  (…)

Gírias de favela

“O que é Parangole?

Era uma expressão muito usada quando cheguei da Bahia para morar no Rio de Janeiro,

E isso significava “Qual é o problema?”.

Waly Salomão (1943-2003), seu grande amigo poeta

Situações para viver

Segundo o grande ativista político e crítico de arte brasileiro, Mário Pedrosa (1900-1981), Hélio Oiticica rompeu com a ideia da pintura para ir em busca de uma arte que se atenha mais à realidade. Ele tentou remover até mesmo os últimos vestígios do cavalete ou qualquer outro suporte da obra de arte. Ele criará seus “penetráveis”, sejam ambientes, abrigos ou espaços coletivos onde você pode vagar livremente, sentir e experimentar diferentes sensações. Tocar, manipular como quiser faz parte do conceito. Seus Parangolés são uma expressão mais voltada para o exterior e ainda mais festiva. O espectador é transformado em participante. O trabalho vira proposta.

O artista não é mais um criador de objetos, mas convida a práticas abertas, descobertas que são apenas sugeridas. As propostas são simples e não precisam ser concluídas. São situações para se viver.  (…)

“Encorporo a revolta!”  (Eu incorporo revolta!)

Os Parangolés usam tantas noções compostas, colocando em movimento todas as facetas do artista. Podemos também considerar que uma sensibilidade homossexual com todas as afirmações tácitas ou exibidas que isso pode implicar e seu apetite por certos paraísos artificiais também contribuíram para esse desejo de revolucionar sem limites e sem timidez a arte de seu tempo? Podemos ver seus Parangolés como uma forma de ato gratuito? Se ele gostava de agir livremente e sem constrangimentos, de oferecer suas performances aleatoriamente, essa aparente leveza era acompanhada por uma mensagem política tácita que aparecia em suas capas de pano. (…)

“A própria sociedade, baseada no preconceito, na legislação obsoleta, minada em todos os sentidos pela máquina de consumo capitalista, cria seus ídolos anti-heróis como o animal a ser sacrificado” 

Hélio Oiticica

Enfermaria Delirium

Com os Parangolés, tudo se torna um jogo entre artista e participantes: há uma cadeia de improvisos e acaso transfigurados um no outro, revelando uma espécie de aposta na inocência do devir, mas também indicando o “sentimento trágico da vida”. Essas coreografias, essas exuberâncias vitais, também têm uma pluralidade de significados que se abrem para novas percepções, novas dimensões, novas estruturas.

“Vivemos na adversidade!” É assim que ele conclui, em tom de alerta e revolta, o manifesto apresentando a exposição “Nova Objetividade Brasileira“, que foi realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em abril de 1967. Marcou um momento decisivo para a arte brasileira ao propor um compromisso político de artistas e críticos da época.  (…)

Uma obra antropofágica

Naquela época, muitos artistas brasileiros se opunham à herança da Europa Ocidental. “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Lei única do mundo. Uma expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz…”.  Esse trecho do Manifesto Antropófago escrito em 1928 pelo grande poeta Oswald de Andrade (1890-1954) mostra a radicalização conceitual dos intelectuais brasileiros. Este manifesto considera o inconsciente da cultura querendo banir toda a diferença histórica que a corta da cultura indígena. É a afirmação de um princípio dinâmico que quer mudar radicalmente a situação histórica do Brasil, retomando à raiz seus processos de hibridização que constituem a base de sua cultura.

A visão da elite, que defende modelos europeus de vida, é rejeitada. Essa antropofagia tem como alvo o que veio de fora, como um canibal, para criar uma linguagem específica do Brasil. Para os artistas brasileiros, consiste em incorporar o outro, comer a língua e a cultura para realizar a transformação, enfrentar  as frustrações geradas pela ação colonial e, acima de tudo,  repensá-las para além dos discursos do Ocidente.  (…)

“Para eles, ser artista significava adotar um comportamento que consistia em desafiar a indústria cultural e, mais amplamente, a sociedade de consumo. Favoreceram o processo, ou seja, o gesto criativo em detrimento do objeto acabado com uma abordagem fundamentalmente nômade, voluntariamente evasiva, tudo o que caracteriza a abordagem de Hélio Oiticica.”, diz Marc Pottier.

A performance como trabalho artístico no cotidiano

Os Parangolés são também uma performance, uma obra que só existe no momento de sua realização, uma forma de “evento”. O “happening”, ou “performance”, com práticas interdisciplinares e de fertilização cruzada,  encena uma forma de experimentação, abrindo assim novos campos de pesquisa e compromisso, de transgressão da norma, de questionamento da norma, produção artística com uma forma de envolver espontaneamente o espectador no processo criativo. Hélio Oiticica manifesta o seu desejo de “colmatar o fosso entre a arte e a vida”, empurrando o espectador para o coração da sua obra artística. Ele também inscreve seu trabalho artístico na vida cotidiana.

A inconclusão é um estado fundamental

Em uma reflexão contemporânea onde todas as fronteiras são porosas, por que não falar também de moda ao estudar os Parangolés? Como a arte em geral, a música, a literatura, a poesia, a moda também cederam às sereias da desconstrução, da performance com um entusiasmo de mensagem política. Assim,  por exemplo, durante seu primeiro desfile, o famoso estilista belga Martin Margiela (1957-) fez as modelos andarem em tinta vermelha, deixando rastros de cor nos tecidos brancos. Estes foram usados para construir a próxima coleção. Provavelmente uma crítica mal disfarçada ao nosso mundo do consumo. Indo contra as tendências de marketing, ele removeu o logotipo, publicidade e desfilou modelos com rostos escondidos. Assim como Hélio Oiticica, ao sacudir os códigos um a um e ultrapassar os limites da arte, esse estilista-artista gosta de celebrar a beleza dos vulneráveis, da fragilidade e da transitoriedade. Transforma o inócuo e o trivial em temas propícios à descoberta, há surpresa e a uma forma de reencantamento, sem nunca deixar de propor novas áreas de experiência nos fora dos limites da obra.  (…)

“Para Marcuse, artistas, filósofos, etc., (…) são aqueles que estão cientes disso (o futuro não é uma repetição do mundo capitalista-imperialista) ou “agem marginalmente” porque não têm “classe” social definida, mas são o que ele chama de “desclassificados” e é por isso que se identificam com os marginalizados.”, Oiticica, correspondência com Lygia Clark.

“O objeto de arte não existe hoje para mim”

Correspondência com Lygia Clark, 1969.

Anti-art e efêmero

Nesse desejo de anti-arte por excelência, de uma obra que seria mais uma intervenção do que um objeto, cujo propósito certamente não é a exposição em um museu ou galeria, como podemos considerar os Parangolés hoje? A obra pode continuar a existir sem o artista? Hélio Oiticica disse que o manto do  Parangolé e o corpo são um só. Então, sem o(s) corpo(s), o que acontece? Ele tentou suprimir a intelectualização da arte criando seus Parangolés. A obra, uma espécie de capa, revelava suas cores, texturas e mensagens apenas quando estava vestida e movida. Um incêndio infeliz parece ter resolvido a questão destruindo grande parte dos   “restos” que a família havia preservado. Quanto valem essas capas, faixas e bandeiras sem o seu condutor? O que eles valem sem o público que os traz à vida? Eles poderiam e deveriam ser reativados? Essa reutilização de uma já existente seria coerente com a abordagem de Hélio Oiticica?

“Não poderíamos considerar hoje que apenas filmes e vídeos mostrando “ações parangolosas” devam ser considerados como a obra, mais do que esses pobres pedaços de tecido deixados inertes como pele morta?”, questiona Marc Pottier.

O que teria decidido Hélio Oiticica, artista da liberdade e da imaginação? Parangolé – qual é o problema?  – nada mais para ver? E se isso fosse liberdade?

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