Verde-sotaques, afetos e memórias: a segunda Bienal das Amazônias

Com 74 artistas, dos Andes ao Atlântico, em Belém do Pará brota a segunda Bienal das Amazônias: um encontro aberto às possibilidades, aos fluxos e aos encantos…

POR MATTEO BERGAMINI

Não era tarefa óbvia imaginar uma segunda edição da Bienal das Amazônias que conseguisse alcançar o mesmo nível, poético e imaginífico, posto em cena na estreia da manifestação, em 2023, pela mostra “Bubuia. Águas como fonte de imaginação e desejo”.

“Verde-distância”, título trazido como guia da nova Bienal pelo livro Verde Vagomundo, do escritor paraense Benedicto Monteiro, consegue ir além e levar a Amazônia a lugares que – falando em bioma stricto sensu, não lhe pertenceriam, mas que têm tudo a ver com os três eixos poéticos escolhidos pelo time curatorial, dirigido por Manuela Moscoso, conjuntamente com Sara Garzón (curadora adjunta), Jean da Silva (co-curador do programa público) e Mónica Amieva (curadora pedagógica), para construir um enredo composto por: “Memórias”, “Sonhos”, “Sotaques”.

Explica a curadora-chefe: “Com essa edição, queremos aprofundar e rearticular ideias para construir o presente, já que a memória não fica fora dos corpos e resiste aos apagamentos históricos que ainda problematizam todo o território amazônico. Além disso, o conceito de sonho não é só articular aspirações – casar, ganhar ou se realizar na vida –, mas leva consigo também sentidos mais amplos: a exemplo, a possibilidade de criar e de viver juntos com a natureza, com a vida do mundo”.
Um planeta infinito, de infinitos tons, ou “Milhares de tons de verdes”, conforme os trechos de Benedicto Monteiro: “verde-cinza, verde-tarde, verde-azul, verde-luz, verde-algo, verde-plano, verde-barro”. E a cada verde uma característica diferente, relatando deslocamentos forçados ou não, falando em uma Amazônia afro-diaspórica e de uma cultura que se torna estrangeira entre um lugar e outro, cuja necessidade é a preservação e união, embora às vezes seja difícil imaginar aproximações.

Uma polifonia, isto é, a narrar mais uma pan-Amazônia infinita, onde a distância verde chega até os Andes, na identidade de populações que – como as ribeirinhas – partilham existências que vivem abençoadas por rios que não são somente d’água, mas voadores ou subterrâneos, de glaciares ou até de fontes que, milhares de quilômetros mais à frente, desaguam no Atlântico misturando ecossistemas e alimentando, se for possível, mais e mais vidas.
Enfim, a Bienal das Amazônias, na sua composição, parece desta vez aproximar os dois lados do mar, o Atlântico e o Pacífico, cortando as abismais distâncias geográficas e demonstrando como a arte e a cultura conseguem falar a mesma língua, mesmo com sotaques muito diferentes e muito caracterizados: em “Verde-distância” fala-se português, espanhol e portunhol, com um toque de francês, inglês, além das línguas nativas, criando um cosmo babilônico onde a harmonia é o tempero primordial para todas as experiências.

O cartão de visita para esta edição fica, sem sombra de dúvida, no andar térreo do Centro Cultural Bienal das Amazônias (CCBA): aqui, talvez, reuniram-se todos os trabalhos que, já por si mesmos, dariam para entender as aproximações teóricas das curadoras, investigando tanto processos de arquitetura social quanto de pinturas que identificam a aura amazônica.

Carla Duncan (Belém, Brasil, n. 1992) Interstício, Enleio, Liame. Série CELEUMA, 2025. Óleo e acrílica sobre painel, 30x20cm. Foto por Ana Dias.

Carla Duncan, belenense mesmo, retrata cenas da capital do Pará sem disfarçar o tom de calor contínuo, a energia de Exú que parece abraçar a cidade, no limite entre a tradição e a quebra do passado, alcançando uma modernidade pictórica presa, porém, na identidade fortíssima que aqui se impulsiona a cada respiro.

Brus Rubio (Pucaurquillo, Loreto, Peru, n. 1983) Meemeba (Fiesta de chicha del Pijuayo), 2024.
Acrílica sobre linho, 200 cm x 149 cm. Foto por Ana Dias.

Ao lado oposto da sala, a criar um diálogo com as esquinas, as caixas de isopor, os vendedores imortalizados por Duncan, a humanidade e o misticismo de Brus Rubio (Peru), quase em oposição aparente com a urbanidade: na sua produção vivem os elementos típicos da Amazônia, atualizando ritos ancestrais, habitats naturais e figuras míticas da floresta mais imaginada do mundo.

Aileen Gavonel e Máxima Acuña. Estamos Vivas, 2025. Manta de fibras naturais e sintéticas, 100 x 150 cm. Foto Ana Dias.

Inúmeras representações de trabalhos cujo cunho é mais atolado na tutela das raízes e da luta contra as explorações contemporâneas, feitas de mineradoras e poluição de terras: Máxima Acuña com Aileen Gavonel (Peru) criam bordados contra a dominação, remetendo a técnicas e desenhos ancestrais, como muitas outras obras desenvolvem pensamento no entorno de vivências com a natureza e, também, com outros reinos além do humano: Buga Peralta (Brasil) oferece uma miniatura de um rebanho de bois, pequenas esculturas em argila acompanhadas por uma trilha sonora, revelando uma “antiga vida” em contato com a terra, com as águas e com os seres do Pantanal, afetada por aquela indústria do agro que na área do Centro-Oeste brasileiro teve uma das suas maiores expansões, quebrando memórias e vivências, criando novas tensões entre o que se define como “progresso” e um “futuro” que deveria tutelar a própria existência.

De vidas menosprezadas e das soluções arquitetônicas temporárias e precárias que, porém, oferecem uma dignidade aos trabalhadores e aos moradores dos bairros periféricos de inúmeras cidades do mundo, ocupa-se Dayro Carrasquilla (Colômbia), presente no CCBA com a bela instalação Barrio Abajo, cujo vídeo é realizado na área homônima da cidade de Cartagena. L. Emperatriz Plácido San Martín (Peru), com as séries Altares para la recuperación de la fuerza e Limpia y Deseo, põe em luz umas “construções de objetos” – quase naturezas-mortas, cuja função é a de canalizar energias.

A propósito de energias, fortes são as produções de Silvana Mendes e Pedro Neves, ambos do Maranhão e os dois indicados ao Prêmio Pipa de 2025: enquanto Silvana cria contraimagens que afirmam corpos negros, reconfigurando memória, raça e territórios em fabulações visuais, criando junções de ícones teoricamente distantes, cores e novas éticas-estéticas, a pintura de Pedro Neves mantém, por um tom quase surrealista, uma vizinhança aos temas das festas, das crendices e dos cultos, misturando – a exemplo nas obras que compõem Luzia e Sebastião – as características dos dois mártires católicos com as figuras dos orixás Oxóssi e Ewá, revitalizando e reforçando um pertencimento espiritual.

O artista homenageado nesta edição (em 2023 foi a grande fotógrafa Elza Lima) é Roberto Evangelista, nascido no Acre e radicado em Manaus, o iniciador do contemporâneo amazônico, criando um legado de instalações de grande porte, além de videoarte.
No andar térreo, a instalação Niká Uiícana, apresentada pela primeira vez em 1989, em Nova Iorque, na galeria Clocktower, é uma colaboração entre o artista e a colega Regina Silveira: “Regina teve o grande poder de fazer ponte para abrir a minha obra ao exterior”, explicava o mesmo Evangelista em uma entrevista, em 2011, contando mais sobre esse encontro feito por cuias e plumas que ascendem do centro da forma redonda em sentido triangular: “A cuia amazônica é essência e forma: ela contém o círculo, a figura geométrica que gerou todas as outras. A cuia, em si, é natureza, mas não mostra só a sua naturalidade, quanto a primeira ideia racional do mundo, deixando de ser natural para tornar-se lógica: contém em si a capacidade de gerar formas prototípicas”.

Em cena, também, está o vídeo Mater Dolorosa, de 1976, um projeto dedicado à Amazônia investigada como “O último laboratório devidamente equipado para o reencontro do homem consigo próprio, onde a natureza ainda propõe reflexões”, como escreveu o mesmo artista.

Como em cada Bienal dos últimos tempos – pré-requisito essencial no mundo mais que globalizado da arte contemporânea –, também em Belém a pintura, em inúmeras formas e formatos, é bem presente na mostra e, entre os exemplos mais interessantes, há a série Mutirões, do jovem artista Chico Ribeiro (Brasil), dedicada às vivências do bairro periférico Águas Brancas, na capital paraense, onde a cidade se mistura com resquícios rurais e da floresta, área de encontros e embates, onde os moradores são retratados em atividades cotidianas que envolvem também práticas de autocuidado. Desenvolvidas durante uma residência no ateliê do artista Éder Oliveira, destaque na primeira edição da Bienal, em 2023, os sujeitos de Chico ficam longe de uma idealização estética, bem mais corpos frenéticos, vibrantes, buscando a construção de um território de pertencimento.

Linda Pongutá (Colômbia) está presente com um conjunto de esculturas cuja estética quase minimalista remete às conexões entre saberes e formas ancestrais e os processos de exploração que determinaram os ciclos da modernidade, partindo das regiões amazônicas e caribenhas: borracha e tabaco, a exemplo.
De elementos metálicos, símbolos de um progresso já sucateado, saem componentes antropomorfos, transformando-se em dedos ou apêndices humanos, criados por ervas e folhas, até simbolizar o quanto a mão de obra – mais uma vez escravizada – tinha sido a principal responsável no desenvolvimento industrial do “novo mundo” e no consequente enriquecimento do “velho”, aliás, na exploração contínua de uma das áreas mais ricas de recursos naturais do planeta.

Eis que os sonhos se tornam também pesadelos, como no Caribbean Hurricane de Jean François Boclé, artista da Martinica francesa cuja instalação, aparentemente divertida, representa uma reivindicação de independência e, ao mesmo tempo, do choque contínuo que afeta os territórios das ilhas, até hoje suspensas entre utopias, distopias e lógicas de poder, as mesmas que a curadora-chefe pontuou: “O território pan-amazônico é múltiplo. Ele guarda memórias ancestrais e, ao mesmo tempo, vive conflitos e transformações muito atuais. Para mim, trata-se de reconhecer que essas dimensões coexistem o tempo todo. O passado e o presente se misturam. A vida nos territórios não cabe em categorias simples. E essa complexidade não é um problema — é a força do lugar”.

Dir-se-ia “Informal”, em referência aos materiais empregados, a produção de Danilo de S’Acre (Brasil) apresentada em “Verde-distância”: argila, areias, elementos em fibras vegetais que, a um olhar superficial, poderiam remeter às experiências “além da pintura” do catalão Antoni Tàpies. Porém, no caso de S’Acre, o além da pintura revela rastros de pesquisa que têm tudo a ver com o eixo dos sonhos, de uma imaginação que entra no surreal, em camadas infinitas de bolhas, céus em chamas, tons de terra e planetas alienígenas, os mesmos que parecem ter parido os seres que brotam na série “Poéticas das ilusões felizes”.

Da pintura ao vídeo, Antonio Paucar (Peru) é mais um dos artistas peruanos que “conectam” os Andes com a Amazônia pelos saberes, os ritos e as vivências que residem na área onde a floresta principia. Mestre e impulsionador da cena contemporânea peruana, Paucar está na Bienal com La purga con las madres de las plantas, produção que foca nos rituais de reaproveitamento do próprio corpo, jogando para fora o desnecessário e o tóxico. Mas, ao invés de remeter ao sentido psicotrópico da cura, “a purga” de Paucar alcança a ideia de purificação por um destino mais reflexivo, de possibilidades inscritas em um devaneio lúcido destinado às nossas mudanças mais íntimas.

Voltando à pintura, diferentes modalidades técnicas para remeter, inclusive, a um sentido ancestral, moldando as linguagens e as tintas originárias com a atualidade, são apresentadas pelas pinturas de Jaider Esbell (Brasil), cujo uso de pigmentos naturais que remetem à cura – jenipapo, urucum e kumatê – sinalizam a abertura de outras percepções e de um leque de encontros com mundos de presenças que a história oficial tentou apagar, contudo resistindo nos eixos da transformação e da própria radicalidade.

Olinda Silvano (Paoyhan, Peru, n. 1969) Sem título, 2025. Tinta Acrílica sobre parede, 350 x 700 cm. Em colaboração com Jaminthon Martinez Ricopa. Foto por Ana Dias.

Olinda Silvano (Peru), por sua vez, no andar térreo do CCBA, leva ao “mundo da arte” – muitas vezes cego perante as práticas não homologadas – motivos geométricos de desenhos kené, ativando “Portas sensoriais, linhas que cantam, curam e conectam” em atos de atividades coletivas que reconectam o humano com a própria natureza e vão além do protagonismo da individualidade.
Enfim, Bárbara Savannah (Brasil), pintora cuja produção dialoga com as teorias da pintura de paisagem de uma forma solta, marcada pela abundância da “arquitetura” da natureza amazônica.

“Uma bienal pode ser espaço de encontro e pensamento coletivo, sim, mas também de cuidado, pausa e troca. O poético aqui não é o oposto do político — é parte dele. E é justamente por isso que acredito que precisamos criar espaços onde a imaginação, a sensibilidade e o pensamento caminhem juntos”, ressalta Manuela Moscoso. Uma possibilidade a mais para ver o que o “verde-distância, principalmente o verde-distância”, pode presentear ao amanhã das ideias.

Verde-distância. Segunda Bienal das Amazônias
Até 30 de novembro de 2025
CCBA, Belém do Pará
@bienalamazonias

Matteo Bergamini é jornalista e crítico de arte.
Trabalha com as revistas italianas ArtsLife e Il Giornale dell’Arte,
e também 
colabora com a portuguesa Umbigo Magazine.

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