POR GONÇALO IVO
Ninguém canta com tanta pureza como os que vivem no inferno.
Seu canto é o que pensamos ser o canto dos anjos.
Franz Kafka, diários.
Alguns artistas encontram o êxtase. Outros enxergam o inferno, o céu e suas múltiplas faces. Penso, porém, que não intuem que arte não é, nem jamais será um simples jogo.
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Pratico a técnica da aquarela há várias décadas. O imprevisível quase sempre faz parte do resultado final. Sua plasticidade, entropia entre a água e a secura plana do papel, é sibilina e movediça, semelhante ao movimento de uma serpente.
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Como aluviões e pequenos córregos da montanha, a aquarela evoca a cor e abriga preciosos pigmentos. Ela me leva a lugares de reinvenção, a sítios inusitados, ao acaso.
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Artistas contemporâneos utilizam artifícios intelectuais, ora para justificar seus empreendimentos, ora para dar fluidez às suas obras e intenções. Esses discursos são geralmente ideológicos e se submetem a uma profunda pobreza plástica, imagética e, sobretudo, poética.
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Não se furtam de uma criança sonhos e recordações. Lembro-me de estar embarcando em 1966, no Aeroporto Santos Dumont, num Vickers Viscount ou talvez num Electra, em direção a Curitiba. Ao meu lado, Leda, Lêdo, Marques Rebelo e Adonias Filho, que não parava de vaticinar em razão da enorme turbulência: “Este avião vai cair”.
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Há artistas que guardam mistérios. Vagam em mundos colisivos. Transitam entre o êxtase, a felicidade, o infortúnio e o pesadelo. Às vezes, de tão delicados, vivem nas portas dessas imensas fronteiras. Colocam-nos de maneira desconfortável em zonas entrópicas, entre o charco e a secura. São meus artistas favoritos.
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Possuo uma caixa de música azul da Prússia, e dela desabam estrelas douradas. Guarda em seu arpejar alguns de meus mais valiosos segredos: Lassus, Couperin, Buxtehude, Albert de Rippe, Bach, Händel, Scarlatti, Schütz, Vivaldi e uma centena de outros. Finalmente, atravesso os séculos. Passo por Mozart, Beethoven, Brahms, Schubert e tantos artistas que me provocam. Chego então a uma sala fechada, onde me encanto com o ruído de alguns ratos dançando no interior do piano preparado de John Cage.
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Quando olho um osso, contemplo sua beleza e a forma perfeita. O osso é como uma pedra, alicerce do efêmero. A carne pode significar vida, mas sua existência e aparência não tangem o perene. Admiro a pintura de Georgia O’Keeffe.
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Há um jardim em meus domínios e nele centenas de árvores. Os pássaros apreciam seus frutos e sementes na manhã fria de Vargem Grande. As serpentes esperam o calor do sol, pois no curso do tempo e da natureza não há fim de tarde com um final feliz.
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Um dos meus pensamentos recorrentes é o exato momento de minha morte. Acompanha-me desde a infância. O primeiro velório e enterro que presenciei foi o do nosso vizinho em Vargem Grande, seu Antoninho. Quando vivo, barganhava com minha mãe pratos de torresmo em troca de algumas varas dos grossos eucaliptos que tínhamos em nossa floresta. O caixão ainda aberto mostrava o defunto em paz, com dois chumaços de algodão nas narinas. Ananias, meu amigo e filho do caseiro-chefe da fazenda, Valdemar, estava muito excitado com o evento. Ainda não sabemos exatamente o que é o fim ou o que este cul-de-sac significa.
Gonçalo Ivo
Vargem Grande, 23 de agosto de 2022.