Por Gonçalo Ivo
Vivo cercado de pequenos objetos que, de maneira fortuita, chegam às minhas mãos. Coleciono conchas de distintos mares, ossos, pedras, borboletas e pássaros mortos que se precipitam na extensa janela de meu ateliê de Vargem Grande. Lembram anjos caídos, como frutos dourados pelo sol. Esse é o meu pequeno “museu de tudo”. São escolhas puramente afetivas que transcendem o mundo material. Como fotografias antigas, congelam o passado. Os ossos de cães, cavalos, porcos e bois viviam a sete palmos, no solo da minha pequena fazenda, no Sítio São João. Exumei-os e, desde esse instante sagrado, passam a ter uma nova existência.
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A arte de João Atanásio é o delta de um rio inexistente. Não intuímos se estamos no mar, na terra ou em um dos inumeráveis recortes de água e mangue. O continente é uma nova promessa. João Atanásio não era apenas um gravador. Imprimia imagens e as transformava em poesia, divertimento e espanto para nossos sentidos. Fomos amigos até sua morte em 2021. Nos despedimos em Teresópolis, num encontro que eu não queria que tivesse fim. Foi meu impressor, mestre gravador e, com ele, fiz minhas primeiras estampas em metal. Eu chegava logo pela manhã em seu apartamento no bairro da Tijuca, no início do verão carioca do ano de 1980. Trabalhávamos até o meio da tarde. Depois de várias garrafas de cerveja, terminávamos de matar nossa imensa e interminável sede e fome no bar Sheik entre pastéis, bolinhos de bacalhau e empadas. Éramos artistas marginais, não do ofício, mas da vida…
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Nunca pensei que teria ganas de falar ou escrever a few lines sobre Hélio Oiticica. Sua obra vive numa lua distante e habita muitas órbitas. Enigmático e várias vezes óbvio, é hoje um mito para muitos. Tenho sentimentos colisivos com relação ao que este magro e pequeno Dionísio produziu na sua curta estada na Terra. Sua aproximação à vida real, ao samba, às manifestações profanas, rituais, atávicas, e ao mesmo tempo à tradição da pintura moderna – o suprematismo, a abstração geométrica europeia – expõe o seu pensamento provocativo. Isso me fascina. Deixou de ser o rigoroso artesão dos metaesquemas para propor casas e bólidos. Ajudou a redesenhar e planificar um novo atlas da arte contemporânea. No Brasil, estabeleceu um norte diferente onde havia apenas ordem e quietude.
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Pedras, lápides, conchas e ossos
Mergulho no mar e trago de suas entranhas uma infinidade de seixos e conchas. Este é um lugar baço e pródigo. Para mim, é como se estivesse entre as verdejantes hortaliças de Vargem Grande.
Sobre as mesas de meu ateliê, disponho tudo que coleto. Pedras, pássaros, pregos, vergalhões enferrujados e conchas, que são como vogais e consoantes. Vêm de sítios distintos: Hydra, Puerto Mont, Lisboa, Nova York…
Agregam um misterioso vocabulário, e sua escrita é capaz de me fazer escutar o ruído de ondas em praias que jamais pisei.
Gonçalo Ivo
Vargem Grande, 4 de setembro de 2022.