A montanha
Não creio em reencarnação, porém, se me fosse oferecida essa dádiva, voltaria a este mundo como ave de rapina ou pedra. Se pedra, talvez me dissimulando em verme, deslizando à procura de um ventre, a revelar tão somente minha ínfima parte superior.
Testemunharia a passagem das horas, a lentidão das sucessivas estações, o sol, a chuva, a neve e o eterno e dolente caminho dos astros em busca de um abrigo em um canto do firmamento.
Mas gostaria de retornar, sobretudo, como a Montagne Sainte-Victoire, reinventada a cada meticulosa pincelada de Paul Cézanne. E seria feliz em ser também árvore e sebe, acariciada pelo vento que corre em direção ao continente, vindo do golfo de Marseille.
Pedras guardam na alma a eternidade. Transformam-se em muros, casas, estradas e cidades, recriam-se eternamente, íntegras mesmo quando erodidas de suas formas pontiagudas e cortantes, metamorfoseadas em sólidos arredondados, adormecidos nos leitos dos rios.
Hermann Hesse, em um de seus contos, descreve uma montanha que sente, vive e vê tudo que passa. É um corpo nu, como num conto de fadas, deitado sobre o mundo. Pressente o calor, e em seu cume uma pequena depressão de água acumulada revela, como uma íris,um cristalino lago que a tudo reflete a tornar manifesto o tempo.
Autorretrato enquanto pedra
Quando cheguei a Bethany, Connecticut, no dia 3 de março de 2020, encantei-me com o lago que dominava a paisagem. Ao seu redor, estreitos caminhos de pedra o adornavam como um valioso e extenso colar. Enxergava em sua plana superfície um olho vigilante. Testemunhou meu exílio compulsório e foi a sentinela da minha solidão.
Ancorado a essa realidade, os dias e as noites eram sequências de sonhos. Só me restou inventariar o que presenciava: árvores, corujas, esquilos, águias, pássaros, insetos… Tudo o que aquela parcela de terra me oferecia, mas em especial suas rochas e pedras deitadas, a repousar em seu sono sobre o chão.
Como metáforas, eram rostos e ocultavam pensamentos. Procurei nelas, em suas formas ora ovaladas, ora cortantes como navalhas, imagens, indícios de faces apagadas pela erosão.
Vivi alguns meses no James and Lilian Clark Studio, convidado pela Josef and Anni Albers Foundation. Trabalhei todos os dias, da madrugada ao fim da noite.
As quatro grandes janelas do ateliê, ao mesmo tempo, traziam a claridade do dia para o interior e me convidavam à contemplação do que se passava do lado de fora.
E, mesmo na primavera, o pequeno e providencial fogão a lenha irradiava calor e o odor da madeira queimada pela casa. Tornou-se uma espécie de interlocutor nos longos dias e nas extensas noites.
Não pude trazer as pedras que achava em meu caminho para agregarem-se à coleção que faço desde minha infância. Quando cheguei a Vargem Grande, voltei a trabalhar em têmpera e aquarela, dando sequência à série que iniciei em Bethany, – L’inventaire des pierres solitaires.
Essas pinturas são reflexos no espelho, tentativas de entender e purificar dias de exílio e solidão.

Foto: Gabi Carrera
Vargem Grande, 22 de fevereiro de 2021.