O cão silencioso

Por Gonçalo Ivo Ando na multidão e o meu nome é Ninguém. Na cidade que cheira a peixe podre e gasolina e demagogia pisado pela tarde vou roçando as escamas das paredes que cosem a minha dor. Sob este céu vinagre sugado por turbinas um vômito de cifras me estonteia. Levo na maresia o meu […]

Por Gonçalo Ivo

Ando na multidão e o meu nome é Ninguém.
Na cidade que cheira a peixe podre
e gasolina e demagogia
pisado pela tarde vou roçando as escamas
das paredes que cosem a minha dor.
Sob este céu vinagre sugado por turbinas
um vômito de cifras me estonteia.
Levo na maresia o meu amor de homem
e ninguém sabe que amo a não ser os cães
que farejam meus passos pelas alamedas. […]
Lêdo Ivo, Finisterra, 1965–1972

 

Admiro meus cães. Estão sempre deitados, estendidos no alpendre de madeira de nossa casa. Parecem ignorar a ordem do mundo. Fatos como guerras e a fome estão distantes de suas apreensões sensoriais. Penso que, para eles, o mundo é o acúmulo de experiências adquiridas de forma instintiva. Toda essa patologia é a glória da natureza, que
caminha paralela à nossa existência. Se, por sorte, um dia, não estivermos mais a caminhar sobre a terra, nenhum réptil, pássaro, verme, peixe, bactéria ou vírus sentirá nossa ausência. Ao contrário, será a primeira jornada de glória e epifania.

A janela aberta deixa entrar a luz do sol que se projeta sobre uma mulher sentada em uma cama. O cenário, uma cidade da América do Norte nos anos 1950. A modelo para a pintura, Jo Hopper, a esposa, como uma esfinge. Jamais saberemos se está a indagar o inefável ou a pensar no preço do sabão de lavar roupa. A arte de Edward Hopper me intriga desde menino. São imagens que carregam em sua essência muitas perguntas e poucas respostas. Transitamos do prosaico e banal ao além da matéria.

Jo, que também era artista, e Edward tinham o costume de viajar de carro pela América. Chegaram ao Novo México. Os automóveis que possuíam eram exaustivamente usados e compulsoriamente abandonados. Conduziam por estradas vicinais e desconhecidas. Edward ia à procura de um sítio que se enquadrasse em seu desejo
obsessivo de ortogonalidade e ordem. Há uma secreta geometria em toda a sua obra e uma esplendorosa submissão à regra do retângulo áureo. Suas composições são precisas e felizes, como a pintura de Piet Mondrian ou a arte de Joseph Albers, em sua infinita Homenagem ao quadrado.

Não apreciava a arte abstrata, tão à la mode na América do Norte dos anos 1950 e 1960. Nem precisava. Nasceu como um anjo torto, gauche na vida e na arte. Seu interesse era narrativo, imagético e psicológico. Herdou de artistas que o precederam, como Grant Wood, George Bellows, Robert Henri, John Sloan ou mesmo Charles Sheeler, o viço
de transmutar imagens em sonhos visuais. E era admirado por Mark Rothko e Willem de Kooning. Sua pintura é provavelmente o alicerce da pop art e de todos os artistas que a sucederam. Vemos em sua arte sombras e projeções futuras sobre Andy Warhol, Roy Lichtenstein, Richard Diebenkorn e tantos outros.

Cape Cod Evening, de 1937, uma imagem pastoral, mostra um cão em primeiro plano, em frente a uma casa vulgar do interior americano. Um casal de meia-idade fita espaços distintos e dispersos. A incomunicabilidade entre os três personagens é evidente. Essa pintura roça Perro semihundido, de Francisco de Goya. Mais perguntas sem
respostas. Na obra de Hopper, escutam-se apenas ecos.

Vargem Grande, 3 de Maio de 2022

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