Missa de Réquiem para Jon Hassell

“Aqui é o fim do mundo, aqui é o fim do mundo em que até aves vêm cantar para encerrá-lo. Em cada poço, dorme um cadáver, no fundo, e nos vastos areais – ossadas de cavalo.” Jorge de Lima, A invenção de Orfeu Avanço em direção ao sonho e nele encontro-me no delta de um […]

“Aqui é o fim do mundo, aqui é o fim do mundo
em que até aves vêm cantar para encerrá-lo.
Em cada poço, dorme um cadáver, no fundo,
e nos vastos areais – ossadas de cavalo.”
Jorge de Lima, A invenção de Orfeu

Avanço em direção ao sonho e nele encontro-me no delta de um vasto rio, sob uma chuva tropical. O trompete ecoa como um trovão em surdina, iluminando os sinuosos recortes da paisagem e o temporal interminável. É preciso aceitar a supremacia da natureza, agressiva como a arte. Os sons trazem uma percepção nova sobre a origem das coisas, o sopro do vento, a umidade deste lugar distante, o contorno da floresta ou um sítio sagrado onde não devemos pisar.

O quarto mundo se apresenta. Um híbrido de sensações, experiências e encontro de culturas. Jon também “saltou o muro dos sonhos e se expôs a variados serenos”. Inventor de uma música extremamente pictórica, rítmica, que se nutre da ancestralidade e o arcaico. Intuímos a África, o Oriente Médio, a Índia, o Paquistão, a Malásia e mesmo um certo mistério brasileiro. Pressentimos em suas composições que o apito de trens imaginários, em passagens noturnas por charcos e estepes, onde o efeito doppler acentua a melancolia e a tristeza desses “sítios hipotecados”, são como chamamentos a ocupar o céu e a paisagem da tarde.

A noite se redime. Criaturas antes invisíveis invadem a treva e animam o teatro de sombras, luzes e sons com sua macabra embriaguez; insetos, pássaros e répteis que, no seu cantar, elevam a escuridão a um tempo de vida. Todos os bichos dessa densa floresta passam a entoar o rumor de um tempo vindouro e a curta madrugada, elo entre a noite e a aurora.

A obra de Hassell me acompanha desde a juventude. Adquiri seu primeiro vinil em Londres, na Oxford Street, no ano de 1980. Em suas criações, transporto-me a lugares e paisagens inexistentes. Sinto-me sob a luz da lua ou em algum ponto do Sudeste Asiático ou da Amazônia que desconheço, sob uma tormenta. Como um Midas sonoro, ele foi capaz de extrair do imaginário e do sonho acordes, harmonias, ruídos e dissonâncias próprias de nosso mundo colidente. O delta desses inúmeros rios se avizinha do colear de uma víbora rubra. Quando ouço o som de seu instrumento e a poeira rasteja no solo invisível, imagino que aves, moluscos, insetos, répteis, peixes, ecoando o diapasão da natureza, cantam a alegria de existir entre o mangue, a floresta e, quem sabe, um conservatório de música em Viena.

Gonçalo Ivo
Vargem Grande, 20 de abril de 2022.

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