Agnes Martin

Iluminura 28 | Réquiem para Harold Budd

Londres, janeiro de 1981. Dividia o meu tempo, na cidade cinza e invernal, entre extensas caminhadas, visitas à Tate e à National Gallery, pubs, livrarias e lojas de disco. À noite, encerrava-me no quarto do hotel e atravessava as madrugadas com meus blocos e estojos de aquarela, minha garrafa de vinho tinto, trabalhando e folheando […]

Londres, janeiro de 1981. Dividia o meu tempo, na cidade cinza e invernal, entre extensas caminhadas, visitas à Tate e à National Gallery, pubs, livrarias e lojas de disco. À noite, encerrava-me no quarto do hotel e atravessava as madrugadas com meus blocos e estojos de aquarela, minha garrafa de vinho tinto, trabalhando e folheando os livros recém-adquiridos. Num daqueles dias, na Oxford Street, próximo ao Marble Arch, deparei-me com a Virgin Records. Ali, comprei dois vinis de Harold Budd. O primeiro, o enigmático The Pavilion of Dreams, de 1978, e o segundo, o etéreo The Plateau of Mirror, em colaboração com Brian Eno, que eu não só admirava, bem como possuía quase todas as publicações.

Música e pintura sempre foram para mim margens do mesmo rio. Não me recordo de ter pintado ou passado um dia sem que houvesse música ao meu redor. Minha paixão pela música é bem anterior ao meu interesse pela pintura, literatura ou cinema. Aos sete, oito anos, escutava Brahms num velho disco de meu
pai, o concerto para violino e orquestra interpretado por Ossy Renard. Também fazia parte das minhas predileções Scarlatti, a quem, até hoje, penso ser, com Vivaldi, o melhor tradutor do canto dos pássaros. Havia ainda um estranho disco de Luciano Berio, que se intitulava Stravinsky au futur. E sempre Bach.

Harold Budd e Brian Eno

De então me resta falar da terceira sinfonia de Gustav Mahler e do estrondoso acontecimento do verão. Pan se réveille, vient l’été ; Ce que les fleurs de prairie me disent. Porém nessa sinfonia há momentos de sublimes suspensões, tempos e espaços infinitos, como o céu da noite. Nebulosos, lúgubres, serenos e longos tal qual o passar do tempo no intangível cosmos. O quarto movimento, Sehr langsam – Misterioso, ou muito lento, de modo misterioso, evoca lembranças e  memórias que iluminam o meu presente.

Lêdo me chamava de melômano. João Cabral de Melo Neto, numa das temporadas passadas no Sítio São João, no início dos anos 1970, me disse ter dirigido sozinho do Rio ao Recife sem ligar o rádio do carro. Detestava música. Ao menos, era o que dizia. Pois minha convivência com inúmeros escritores me fez
acreditar somente na ficção de suas poesias. João e eu fitávamos o céu iluminado pela luz da lua no pátio do sítio. Dizia a ele que amava a forma das nuvens e como esse claro-escuro movediço, deslizando em seu azul da prússia, me levava a pensar em música. João vaticinou que, um dia, eu seria um “pintor abstrato”.

Encontro na obra de Harold Budd reflexos de um quase silêncio. Ela me transporta a um estado de contemplação, lagunas de serenidade ou o céu planar sempre azul de Madrid. Há algo de imaterial, transparente e líquido em Budd, bem como uma fragrância de “épice” oriental. Em várias de suas peças do álbum Luxa, de 1986, impregnadas de alusões pictóricas, homenageia artistas plásticos do passado e do presente – Serge Poliakoff, Agnes Martin, Anish Kappor, Paul McCarthy…

Sua longa e circular canção As Long as I Can Hold My Breath (by Night) era minha oração e o mantra que ecoava nas florestas de Bethany durante a spring frost, enquanto me perdia nos tortuosos caminhos de pedra ao redor de seu lago congelado.

Serge Poliakoff

Gonçalo Ivo
Madrid, 6 de fevereiro de 2022

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