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Esse mundo perfeito

À memória de Lélia Coelho Frota “Nosso negócio é a contemplação da nuvem.” Carlos Drummond de Andrade “Suas pinturas são nuas como Adão e Eva, antes da queda. Sem nenhuma vergonha. Nem sabem diferenciar o bem do mal. Ainda não provaram o fruto do conhecimento e ignoram, por conseguinte, a noção mesma do pecado plástico […]

À memória de Lélia Coelho Frota

“Nosso negócio é a contemplação da nuvem.”

Carlos Drummond de Andrade

“Suas pinturas são nuas como Adão e Eva, antes da queda. Sem nenhuma vergonha. Nem sabem diferenciar o bem do mal. Ainda não provaram o fruto do conhecimento e ignoram, por conseguinte, a noção mesma do pecado plástico que se ensina nas Academias. Sabem apenas que a pintura ajuda a viver, e que ela é seu único e perpétuo Éden.”

Anatole Jakovsky

 

A arte, como experimento, agrega as mais distintas sensações. Somos os viajantes de suas poliédricas e variadas manifestações, de seus tempos ora espirituais, ora físicos, sensoriais, racionais ou imateriais, tangenciando o nada. Vivemos o mistério da arte e de sua natureza diversa de ser e existir.

Imagens e narrativas ameaçadoras, como o sacrifício dos santos mártires dos retábulos medievais ou os céus e mares turbulentos de Turner ou Courbet, são como pesadelos que surgem das trevas e projetam-se no imenso e caudaloso rio de repertórios e representações. O acúmulo de agruras, fantasmagorias e imagens penosas é vastíssimo, e elas estão presentes em obras como as de Francisco de Goya, Kafka, Francis Bacon, Egon Schiele e Lucien Freud, a revelar o lado lunar, sombrio e angustiante da vida.

Meu encontro com a luminosa arte de Júlio Martins da Silva [1893–1979], seus inúmeros verdes, azuis e rosas, que para mim sempre evocaram o silêncio das coisas, como na pintura Primavera, de Boticelli, ou no retábulo La Anunciación, de Fra Angelico, se deu no final de minha infância. Foi por intermédio da poetisa Lélia Coelho Frota, amiga de meus pais, que generosamente lhes apresentou Júlio, e eles logo incorporaram seis pequenas pinturas do artista à sua coleção.

“Comecei a pintar a lápis de cor bem mais tarde, quando morava na Lapa no Rio de Janeiro e era peão do Hotel Avenida. Quando fui para o Morro União, ainda trabalhava efetivo. Quando me aposentei definitivamente, em 1964, foi a época para me expandir… minha pincelada sempre foi fina, me aperfeiçoei aos poucos.” Filho de um cozinheiro, Júlio foi criado em casa de parentes na cidade do Rio de Janeiro. Em 1910, já frequentava rodas de samba, carnavais e a boemia carioca. Costumava gabar-se de seu talento para a música.

Ele inventa uma arte própria, singular. Não cria imagens para serem interpretadas, pois a razão não é uma boa ferramenta para desvendar esses mundos aparentemente homogêneos. Em sua pintura, o tempo está sempre suspenso ou congelado, como fotogramas. As imagens revelam um universo perfeito, sacro, em paz, dotado de simetria e harmonia. Pratica como artista um ofício limpo, impecável e de grande potência poética. Mergulhamos em seus jardins paradisíacos, alguns habitados por pequenos castelos, árvores frondosas, estátuas, casinhas de vila, florestas cortadas por riachos e pontes, onde aves, bichos e gente dissolvem-se num éden eterno. Não há por que explicar nada dessa casta obra. Engasta-se na grande vertente que a crítica “culta” passou a chamar de peinture naïf.

Prefiro outra categoria de classificação para a arte de Júlio Martins da Silva: pura como as flores do campo, a água ou os seixos de um rio. Leonardo da Vinci postulava que um muro castigado pela passagem do tempo, ostentando rachaduras, musgos e degradação, deveria ser visto com a mesma nobreza e inquietude com que olhamos uma pintura. Júlio, artista de Niterói, nos oferece vários mundos e muros, povoados de paz, alegria e felicidade.

Necessitamos de mais? Continuaremos a contemplar as nuvens?

Madrid, 8 de novembro de 2021.

Gonçalo Ivo

 

P.S.

Anatole Jakovsky [1907–1983] foi crítico de arte, escritor, colecionador, poliglota e especialista em arte naïf francesa. É conhecido pela doação de obras que deu origem ao Museu de Arte Naïf Anatole Jakovsky em Nice.

Lélia Coelho Frota [1938–2010], poeta, museóloga, antropóloga, a quem dedico este texto, é autora do magnífico livro Mitopoética de nove artistas brasileiros, editado em 1978 pela Fundação Nacional de Arte. Desde minha juventude, nos encontramos entre o Brasil e a Europa. A última vez foi em Vargem Grande, em meu ateliê, em companhia da poetisa e embaixadora Vera Pedrosa.

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