MESTRE
Rio de Janeiro, 40 graus. Nos anos 1970, era comum encontrarmos uma passagem em direção a um estado de liberdade, ao arbítrio e à transcendência. No interminável e quente verão de 1975–1976, interessava-me ainda mais
por pintura. Estudava arquitetura na Universidade Federal Fluminense e ampliava minhas amizades. Relacionava-me com gente do subúrbio carioca, coisa até então inédita em minha vida de menino burguês de classe média alta.
Antes de iniciar a escola de arquitetura, frequentei os cursos de desenho de Aluísio Carvão e pintura de Sérgio de Campos Mello no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. A primeira aula proferida por Sérgio foi para mim algo revelador e impactante. Ele possuía uma extensa coleção de slides. Seu saber móvel era imenso. As classes eram no fim do dia, no crepúsculo carioca que se engastava entre o vento quente do mar que invadia a baía da Guanabara e o ruído dos automóveis e aviões no Aterro do Flamengo.
Sérgio era um homem catalisador. Nós nos tornamos amigos por toda a vida. Um dia, no sítio São João, em
Teresópolis, se impressionou com uma serpente colorida, uma cobra coral muito perigosa que eu acabara de matar.
Também era um contador de estórias. Falou-me de uma viagem que fizera de carro, acho que em fins dos anos
1960, início dos anos 1970, entre Nova York e Chicago. Enquanto descrevia a paisagem industrial da América e
suas contradições, eu o seguia, no banco dianteiro, nessa cruzada misteriosa. Podíamos ver as torres de petróleo,
as usinas e as imensas fábricas com seus galpões iluminados.
Com Sérgio, cada encontro era uma novidade. Naquela época, fiz vários filmes em Super-8. Queria ter sido cineasta. Tornei-me pintor. Na cinemateca do MAM, pude ver Herzog, Pasolini, Glauber… Hitchcock acabara de ser ressuscitado por Truffaut. Era um tempo em movimento. Éramos felizes.
Vivi intensamente aqueles momentos, mas nunca pertenci a eles. Mesmo na juventude, em fortuitos encontros com Maria Leontina, Lygia Clark e Abelardo Zaluar, nenhum outro artista me mostrou um cenário tão diverso sobre a arte e seus desdobramentos como Sérgio de Campos Mello. Esse artista/mestre parecia não querer professar nenhum cânone. Me confidenciou seus textos e pensamentos sobre o kitsch e me apresentou ao escritor Edward Said. Isso, nos anos 1980. Não havia em sua oratória traços de arrogância.
O período mais interessante de nossa relação se deu em Paris e, depois, no Brasil. Desde nosso fortuito encontro
na Rue de Rennes, esquina com a Rue de L’Abbé Gregoire, não deixamos de nos ver.
Penso que Sérgio não via em mim uma extensão de suas reflexões estéticas, nem estava interessado em ter discípulos. Tinha a liberdade dos verdadeiros artistas e eu sabia da importância de suas lições. Ofereci a ele e a Aline, sua mulher, um livro sobre meu trabalho com um generoso texto do nosso grande crítico Frederico Morais, seu querido amigo.
Emocionado, generoso com meu progresso como artista, confidenciou-me que fui seu primeiro aluno a citá-lo
como professor.
Gonçalo Ivo
Sítio São João, 10 de março de 2022.