“Cuenca abstracta, pura, de color plata, de
gentiles piedras, hecha de hallazgos y de olvidos –
como el mismo amor –, cubista y medieval,
elegante, desgarrada, fiera, tiernísima como una
loba parida, colgada y abierta; Cuenca, luminosa,
alada, airada, serena y enloquecida, infinita,
igual, obsesionante, hidalga, vieja Cuenca.”
Camilo José Cela
Cuenca, 29 de outubro de 2021
Há muito não pintava aquarelas em um quarto de hotel. O espaço é exíguo, as mesas pequenas e a iluminação quase sempre faible. Porém esse ofício nômade tornou-se extremamente frequente em minha vida de pintor.
Lembro-me de uma viagem, em 1980, visitando Inglaterra, Portugal e Espanha. Mantinha um cotidiano praticamente imutável. Durante o dia saía para respirar os ares das cidades e seus museus. À noite encerrava-me no quarto do hotel a trabalhar em meus diários, livros e cadernos de aquarela. Lentamente o papel ia absorvendo as impressões diurnas e seus clarões, iluminando a madrugada, com imprecisas manchas transparentes revelando estórias e subjetividades.
Esses pequenos livros guardam imagens em segredo. São como pequenas oferendas, iluminuras, às vezes menores do que a palma da minha mão; o testemunho de meu autoexílio e do estado de transe e trânsito entre mundos que ora superam, ora recriam ou borram a realidade do cotidiano.
O ateliê sempre foi meu templo, lugar sagrado em Teresópolis, onde professo meu ofício e me interrogo a respeito das certezas e das dúvidas. Aí, sinto-me livre e abro meus braços em cruz na intenção de entender minhas hesitações e tentações.
A cada imagem concluída, coloco o monograma, a data e o título, quase sempre no centro do papel, pequenos comentários que têm a ver com os lugares em que foram concebidos. São como haikus que sintetizam a linguagem pictórica com um discurso literário. Sou levado por essas pequenas imagens, como se fossem poemas de Matsuo Bashō ao descrever a efeméride de uma cigarra a cantar seu réquiem em uma derradeira tarde de verão.
Caminho nas estreitas sendas de Cuenca, suas ladeiras e escadas. Veio a chuva e volto novamente ao meu pequeno quarto de hotel. A água castiga velhas telhas de barro. São inúmeros os muros até o precipício que nos leva ao vale, ao rio e a estrada que serpenteia as negras falésias.
Tenho minha pequena mesa de trabalho. Continuo pintando aquarelas. O mundo permanece o mesmo, imóvel. Estou no meu quarto de hotel em Cuenca, como há quarenta anos no hotel Londres, na calle de Galdo, em Madrid. Pinto aquarelas.
Sou o mesmo.
Gonçalo Ivo
Cuenca.
29 .09 .2021