POR ANDRÉ TORRES
Palavras-chave: Ana Raylander; Arte Contemporânea; Práticas Conceituais; Identidade.
I. A hora de Ana Raylander
Ana Raylander tem emergido na cena artística brasileira de modo irrecusável. Em 2023, realizou Willian, individual na Temporada de Projetos do Paço das Artes, em São Paulo. No início deste ano, participou da terceira edição da residência artística na Usina Luis Maluf (ULM), na mesma cidade. Em seguida, abriu sua primeira exposição em galeria comercial, Painéis, na Galeria Cavalo, no Rio de Janeiro. Recentemente, exibiu Clarão na Martins & Monteiro. Enquanto isso, desenvolve projetos para a Bolsa Pampulha e para a Coleção Moraes Barbosa. Ana também foi destaque na publicação internacional Art Review, que consagrou uma edição especial ao Brasil, lançada, apropriadamente, em abril, junto à abertura da Bienal de Veneza, encabeçada por Adriano Pedrosa. Eleita por Cinthia Marcelle, artista com quem Raylander procura dialogar não só interpessoalmente, mas em sua prática, a artista figura na seção Future Greats, dedicada aos agentes do campo da arte que, apesar da relevância de suas práticas, não receberam (ainda) o devido reconhecimento.
Seu comprometimento com o próprio processo, cuja multiplicidade de formas, meios, pesquisas e interesses, não concorrem, mas existem em simultaneidade, compondo um corpo de obra que tem reposicionado estratégias da arte conceitual, tem se revelado essencial para compreender certos caminhos da produção contemporânea. Mulher trans e racializada, ela não desconhece a vontade do mercado em fetichizá-la, produtificá-la, reduzir seu fazer à sua identidade. Ana Raylander não a nega, mas também não se reduz a ela. É um corpo que habita um mundo quebrado, violento, mas também encantado pela linguagem, pelo afeto e pelo fazer. É um corpo que age, que se ritualiza, que instaura formas novas no mundo que partem de experiências pessoais, mas não a circunscrevem somente à sua subjetividade, mas visam, constantemente, criar afetos e reflexões que transcendem sua própria existência. Para isso, Ana se vale de signos instituídos, como aqueles da linguagem, mas também os da visualidade, lidando tanto com aspectos históricos da nossa cultura, quanto com dispositivos, estruturas, estratégias e instituições sociais.
II. Painéis
Aqueles que adentraram a primeira sala da Galeria Cavalo, em Botafogo, no Rio de Janeiro, entre os dias 27 de março e 11 de maio, se depararam com os Painéis de Ana Raylander. De modo tautológico, o título da mostra, compartilhado com grande parte dos trabalhos em exposição, prenunciava e explicitava a natureza morfológica daquilo que o público viria a encontrar em três das quatro paredes da galeria. Estes, por sua vez, se faziam reminiscências dos murais enraizados em nosso imaginário cultural.
Afinal, é comum encontrarmos em instituições de ensino do Brasil de diferentes níveis – do básico ao superior –, mas também em outros espaços institucionais – de hospitais à escritórios – murais contendo múltiplos tipos de cartazes informativos. Usualmente espalhados nos corredores – espaços propícios à circulação e aos encontros de corpos, ideias e vontades – ou em salas destinadas ao repouso – e contemplação–, esses painéis podem ser encarados como meios de exposição com inclinações democráticas. Por vezes balizados pela aprovação e supervisão de representantes da instituição, os murais de avisos não deixam de oferecer a possibilidade de subversão pelos demais agentes que ocupam, frequentam e conhecem os códigos daquele espaço.
Acreditamos na suposta atualidade dos dizeres e imagens que ali se dispõem, mas não deixamos de computar as diferenças temporais apresentadas em cada fragmento que os compõem. De anúncios oficiais ao oferecimento de serviços, o mural, como lugar do transitório, porta sua própria historicidade, observada em seu desgaste físico ou na sobreposição de cartazes. Tal como um museu, o mural coleciona e dispõem diferentes temporalidades.
Por vezes, somos impelidos a interagir com eles. Nesses casos, as possibilidades de ações podem ser tão vastas quanto a criatividade dos indivíduos que se demoram em sua presença. Podem ser de ordem iconoclasta – do apagamento parcial à subtração total do objeto, por exemplo – ou dialógica – pela deposição de escritos, rabiscos e desenhos em sua superfície. Nesse sentido, o mural, em um ambiente dirigido pelas normativas do disciplinamento – físico e intelectual – emerge como um entrelugar de expressão individual e coletiva, de decoro e subversão, de informação e expressão.
Sobre placas de compensado de madeira, medindo 207 x 136 cm (cada), dispostas na vertical, Ana Raylander (1995) esticou feltros de diferentes cores – do bege ao marrom – e sobre eles, com o auxílio de alfinetes, dispôs alguns de seus Trabalhos Escolares, série contínua de desenhos iniciada em 2018 que já resultou em dezenas de composições. O exercício retrospectivo, de olhar para a própria produção, demanda a reelaboração e, por vezes, o reposicionamento de uma prática no próprio corpo de trabalho do qual participa.
Ao já ter exposto os Trabalhos Escolares que compõem seus Painéis, tornava-se imperativo o deslocamento, não só de um contexto expositivo para o outro, mas do próprio modo de organização desses trabalhos. Ana evita repetir-se, deseja sempre avançar em sua pesquisa. A renovação, do espaço, da forma (o mural) e da organização, delineia novos sentidos, retece conexões, oferece novas aberturas.
A tonalidade dos trabalhos escolhidos para cada mural não escapa do espectro cromático do tecido que lhe serve de base, salvo algumas pontuações pouco dissonantes. Fazem coro cromático ao feltro a moldura de cada painel – em madeira de cor similar – e as diminutas esferas que encabeçam os alfinetes – pintadas manualmente para se adequarem aos espectro tonal do conjunto.
Painéis foi a primeira individual da artista em galeria comercial. A mineira, radicada em São Paulo, tem se destacado por uma produção engajada com diferentes linguagens. Raylander, faz e dirige performances, escreve e cria intervenções, instalações e esculturas, tais como o exemplar – também em exposição – feito com caibro de cedrinho, que lhe serve de coluna, coberto por artigos de indumentária – roupas, tecidos e acessórios – torcidos sobre sua superfície, dotando-a de volumes, texturas e variações tonais. Esta última, resulta de experimentações que já vinham sendo conduzidas pela artista desde 2013, com Maroons e, posteriormente, Tobacco Studies.
Interessante notar que a artista tenha escolhido destacar justamente esta parcela de sua produção na mostra da Galeria Cavalo. O que se coloca à vista não é um objeto que resulta e é extraído de um processo criativo, mas diagramas e expressões do pensamento político-artístico que serve de base especulativa do seu fazer. Nesse sentido, somos lembrados de uma estratégia fundamental do atual momento do capitalismo, também chamado capitalismo cognitivo, que produtifica o trabalho intelectual, transformando-o em conteúdo a ser potencialmente distribuído em ampla escala. O Capital, afinal, não transforma somente materialidades em produtos, mas também comercializa as ideias e sensações que dão sustentação a eles, prescrevendo usos e identidades a partir da sua assimilação. Mesmo as formas que visam resistir ao capitalismo, são tragadas, ou submetidas à ele tendo em vista sua disposição para organizar e planificar a vida em nossa sociedade. É preciso, então, negociar com suas estruturas para viabilizar a própria existência em seu sistema.
Por isso, Ana tem se mostrado cuidadosa nas relações com as galerias. Apesar das aspirações institucionais de sua prática, ela compreende a importância desses agentes do mercado para a viabilidade econômica de seu trabalho e, por conseguinte, de sua existência. Afinal, é a comercialização de seus trabalhos que permitirá a continuidade e aprofundamento de seus processos. Contudo, Ana está atenta às diferentes práticas do mercado da arte. Cria relações com galerias, exibe trabalhos, é apresentada em feiras, mas ainda não firmou contrato de representação, por mover-se por uma ética sólida, que a afasta do deslumbre dos grandes nomes e das promessas genéricas. Ela leva a sério sua prática e busca associar-se a quem compartilhar do mesmo interesse, sem reduzir a mero produto aquilo que se revela como constante trabalho.
[1] O feltro habita uma posição ambígua na categoria “Tecidos”. Sua constituição não segue o procedimento mais tradicional da indústria têxtil que entremeia fibras. Já o processo de feitura do feltro envolve processos semelhantes ao do papel, em que a matéria fibrosa é agregada via prensamento.
III. Tobacco Studies
Torcer. Retorcer. Contorcer. Amarrar. Esses gestos simples e manuais conduzem o fazer que deságua na instalação Tobacco Studies, apresentada por Ana Raylander ao final da residência artística na Luis Maluf. O trabalho destacava-se da profusão de obras, principalmente por sua magnitude. Dominando grande parte do mezanino da galeria, as estruturas da artistas revelavam sua dedicação e propósito. Afinal, o tempo curto da residência não seria, à princípio, propício às grandes experimentações, mais a aprofundar-se em uma pesquisa em curso ou revisitar e desdobrar processos prévios, dada sua brevidade.
Raylander, contudo, atuou na convergência desses três caminhos. Por um lado, revisitou sua prática, utilizando como matéria prima para os trabalhos as roupas de tons marrons que comporam seu guarda-roupa nos últimos anos. Ana ficou uma década realizando uma performance lenta e discreta, na qual apenas vestia-se com variações da cor marrom. A escolha, por sua vez, fundamenta-se no afeto, na memória de seu avô, figura que orbita o seu fazer e cujo lar tingia-se com a mesma coloração. Marrom, afinal, é a cor da terra, do café, da pele de Ana e de milhões de brasileiros que surgiram do encontro de diferentes matrizes étnicas, cuja motivação ideológica se guiou pela ideia de um embranquecimento. O marrom torna-se uma afirmação da legitimidade desse tom e de suas nuances. Ainda que o termo seja uno, aquilo que nomeia é múltiplo em suas diferenças, como a própria artista explicita nos materiais empregados.
Por outro lado, ela aprofunda e desdobra uma pesquisa que já havia iniciado em Maroons [marrom, em inglês] e na qual recobre estruturas pré-fabricadas industrialmente com roupas torcidas, que lhes conferem, simultaneamente, robustez e maciez, além de criar variações tonais e de textura que amarram o olhar do público, seduzido pelas qualidades de suas superfícies. Por outro lado, Raylander vai além do que se poderia esperar, despendendo horas no laborar repetitivo que lhe possibilitou apresentar dez peças após o período de aproximadamente um mês.
Vestidos com suas roupas, essas formas, contudo, recusam tornar-se duplos da artista. São vestígios do seu fazer, inegavelmente. Mas pertencem a outras escalas. Se por um lado, a grande maioria das peças possui a medida padrão de um metro, outras em muito a superam, variando entre 3,30 e 4,60 metros. Sua disposição recusa a autonomia do objeto, negando a escultura como um objeto autoportante e investigando seu caráter relacional e contextual. Suas formas precisam do espaço, não só do contexto arquitetônico que as instaura como “formas artísticas”, mas por se apoiarem nele, seja nas paredes, no chão, no teto, ou umas sobre as outras. São corpos que incidem sobre outros que se assemelham pelos gestos e materiais que os compõem, mas se revelam específicos nas relações criadas naquele ambiente.
O gesto moroso do torcer e do trançar faz lembrar Tunga, cujas tranças apontam para a unidade como algo que não se constitui com um único termo, muito menos de um binômio – que estabeleceria a dicotomia – mas se faz, ao menos, com três elementos. Se as tranças, por um lado, possuem correlações culturais com o feminino, os Tacapes, formas agenciadas por Tunga, relacionam-se com o masculino. Sua união, como retomado, também por Ana, cria um terceiro elemento, nem somente trança, ou torção, nem totalmente arma, mas um terceiro, que mesmo instaurado no mundo, não foi ainda nomeado, nem se reduz à mera articulação trança-tacape. Diferente de Tunga, Ana prefere materiais mais cotidianos e pessoais, do que os impregnados da impessoalidade industrial e contaminados pela magnitude de sua matéria. Como Sonia Gomes, outra artista que referencia em sua prática, prefere recuperar tecidos desprezados.
Ana não nega influências, compreende a tradição artística brasileira, e nela transita, sem prender-se unicamente às disposições da história da arte, mas ao universo cotidiano. Tobacco Studies, afinal, não só pelas tonalidades acastanhadas do fumo, mas pela própria ação que direciona o fazer, homenageia o gesto prosaico de preparar o tabaco para o consumo, tema que também foi empregado por Almeida Júnior em seu Caipira picando fumo (1893). Picar e enrolar o fumo são ações repetitivas performadas para o trabalho, assim como para o lazer. Neste último, compõem o ritual e o ritmo que prepara para o devaneio e contemplação.
O mesmo procedimento retornou em Clarão, agora, com uma pronunciada alteração cromática. Ao invés dos tons castanhos, Ana parte para o branco. Mesmo tendo usado o marrom ostensivamente ao longo de sua prática, não se restringe a ele. Reivindica o branco. Expõem sua Razão – nome de alguns objetos que compõem a série apresentada na individual na Martins & Monteiro. Revela seu Sepulcro caiado – título de outro trabalho na mostra que revela-se, à quem encara seu abismo, o mais subjetivo por abrigar uma foto antiga da artista e sua família.
Se o marrom denota uma complexa construção social marcada pelo conceito de raça, o branco não deixa de assumir a mesma posição. O branco é a cor do Eu Hegemônico – para tomar de empréstimo o termo de Sueli Carneiro – que se constitui pela diferenciação constituída pela noção de raça. Esta privilegia o homem branco cisgênero heterossexual. O sujeito gestado e legado pela razão cartesiana que distancia sujeito e objeto, que aparta o ser humano da natureza, que classifica, ordena, conforma, reduz tudo à linguagem. Aquele que se define pela negação da diferença, fazendo-se motor perpétuo do mesmo. Aquele que legisla sobre a linguagem e seus usos, e a qual devemos atravessar na tentativa de nos conectar.
A “mão branca”, à qual Raylander se refere em alguns dos Trabalhos Escolares, é também uma remissão a esse sujeito. A branquitude é um quebra-cabeça que deve ser desmontado, abrindo espaço para aquilo que visa encobrir. Na prática de Ana Raylander, tudo tem um propósito simbólico. Entretanto, seus signos não se restringem à referentes diretos, mas trançam e torcem os sentidos a eles atribuídos. Eles se somam e se embaralham, são colecionados, assumindo-se não como elementos estáveis, mas como arquivos de sentidos passíveis de serem recontextualizados.
[2] CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser. Sueli Carneiro. 1a Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.
IV. Atlas Hypomnemata
Retomemos os Painéis de Ana Raylander. Sua construção relembra, além dos murais institucionais, o ambicioso projeto Atlas Mnemosyne de Aby Warburg. Mais do que um objeto, em si, seu Atlas inacabado – cumprindo sua abertura infinita – pode ser recebido como um método do pensar imagético – com e sobre imagens. Em amplas superfícies planas, o historiador da arte dispunha suas pranchas – reproduções de imagens de diferentes fontes – na tentativa de observar a sobrevivência de certos elementos míticos da cultura justamente por sua contínua reelaboração em diferentes formas manifestadas pela criatividade humana, frutos tanto da técnica artística quanto científica.
Os painéis de Raylander também observam certas continuidades em nossa cultura. A Cruz de Malta, depurada em símbolo do colonialismo português ao ter estampado inúmeras representações de suas caravelas, desponta, mesmo quando fragmentada, para revelar a continuidade das violências do empreendimento imperialista. Como coleção de diferentes rastros temporais, os murais de Raylander, contudo, tem ambições muito mais circunscritas do que os de Warburg. Não pretendem tocar qualquer formulação de universalidade, mas servir como instrumento de produção e reflexão do seu próprio fazer artístico que, mesmo específico, não se descola do contexto no qual encontra-se inserido.
Nesse sentido, poderíamos pensar seus painéis como um Atlas Hypomnemata. O termo, que também guarda relações com a ideia de memória – mnema designava as lembranças e as formas memoriais, como as tumbas, para os antigo helenos – refere-se à formas individuais de escrita (de si), recuperados por Foucault nos cursos e conferências do final de sua vida. Hypomnemata, em sua acepção primeva, designava os cadernos de anotação pessoal, uma tecnologia que permitia ao sujeito dispor – e refletir – sobre sua própria existência. Seu uso envolve uma prática regrada, meditativa, mas que não exclui a exterioridade do indivíduo. As “anotações” da artista, contudo, partem de experiências e observações individuais, mas não se restringem a elas. Se revelam uma individualidade, é menos a de um sujeito, do que de um projeto artístico que diariamente busca se viabilizar no mundo.
Os Trabalhos Escolares de Raylander, como anotações de um copo que afirma-se, também, na prática artística, tornam indissociáveis as imagens do pensamento e o pensamento com imagens. Neles, os conceitos são atravessados por sentimentos, ancorando o abstrato na realidade e vice-versa, não na tentativa de estabelecer um espaço intermediário, mas para ressaltar o caráter transitório das relações entre sentir e saber, que se contaminam e transformam continuamente.
V. Transliteração
Um termo recorrente nos desenhos da série Trabalhos Escolares é transversalidade. O conceito nomeia a qualidade daquilo que não se baseia em uma abordagem aprofundada no mesmo – por exemplo, um único campo disciplinar – mas aproxima, fricciona, correlaciona, saberes com desenvolvimentos dessemelhantes. A transversalidade visa, então, a ampliação de horizontes, observando a complexidade das/nas redes estabelecidas entre conhecimentos específicos. Nos desenhos de Raylander, a história, individual e coletiva, encontra a psicanálise, a sociologia, e a arte na tentativa de estabelecer uma representação de processos invisíveis que atravessam seu fazer e seu estar no mundo.
Na geometria, transversal é a linha que correlaciona duas paralelas em pontos distintos. Usualmente é representada como uma diagonal, linha dotada da capacidade de desestabilizar ou dotar de dinâmica a regularidade da composição. Raylander faz uso recorrente de setas transversais nos seus esquemas, por vezes as cruza, como se delimitando um lugar que nunca é nomeado, legando o interesse pelas linhas de força que representam a necessidade de deslocamento, de atravessamento. Uma espécie de força como aquela agenciada por Jota Mombaça, “ uma força que não é nem o sujeito e nem o mundo, mas atravessa tudo” . Mesmo que os desenhos sintetizem proposições – consolidando seu valor individual – eles são fragmentos de um contínuo que segue engendrando novas formas a partir do embate entre sujeito e mundo.
Somos tomados pelo impulso da transversalidade quando olhamos para suas formas, passando de um desenho para o outro, em saltos temporais e espaciais, criando nossas próprias relações, ainda que no espaço programado da circunscrição de cada painel. Cabe ao observador realizar a travessia naquele espaço conceitual que o atravessa, guiando-se pela própria experiência.
No percurso, a historicidade da linguagem pode vir a assaltar nossos olhos. Toda língua encontra-se aberta a diferentes desenvolvimentos no decorrer do tempo, de modo que certos vocábulos vão adquirindo novos sentidos culturais. O prefixo trans, por exemplo, tinha o sentido de deslocamento, marcando o movimento necessário de um espaço a outro, assim como aquilo que se encontrava para além de algo, ou que se deve atravessar para chegar em novo território. Nos anos recentes, com o aumento do debate público sobre formas de vida dissidentes da normativa cis-heterossexual – certa “poeira de mundo” –, o termo trans passou a identificar pessoas transexuais, transgêneros e travestis. Isso não significa que um sentido tenha suplantado o outro. Esses significados distam, de fato, mas não concorrem. Podem coexistir.
Outro termo que inicia com o prefixo é transliteração – que mesmo ausente nos desenhos, refulge em sua presença. O termo abarca as operações de transposição entre diferentes formas de linguagem, na tentativa de se chegar ao entendimento para além da suposta correspondência literal entre vocábulos provenientes de sistemas culturais distintos. Transliteramos quando traduzimos de um idioma para o outro, mas vale lembrar, entretanto, que toda tradução é uma traição. Seu produto é resultado da apropriação, adaptação e reapresentação do discurso de um sujeito autor por um outro indivíduo.
Em latim, Littera tanto designa uma missiva, uma carta endereçada à alguém, como pode nomear aquilo que faz do texto uma correspondência, a letra – signo múltiplo e multiplicável que dá origem às palavras. Trans-literar pode ser da ordem do transcender à própria linguagem, de ultrapassá-la para retornar às imagens, ou de compreender que toda a experiência encontra-se além das suas possibilidades de sua representação – verbal ou imagética – mas que delas podem fazer trânsito, promover encontros, e não meramente definir e cristalizar. Também revela a vontade de comunicar, não como mera transmissão de informação, mas como estabelecimento de trânsitos de sentido, no qual o indivíduo, para dizer, precisa sair de si para chegar ao outro. Nesse âmbito, a linguagem – verbal e visual – apresenta-se como repositório de signos compartilhados que permite um revestimento objetivo para experiências subjetivas que serão traduzidas por outra pessoa.
As expressões verbais articuladas por Raylander resultam de operações de deslocamento de um corpo que reconhece nossa existência no mundo como experiência coordenada pela linguagem. Ela se apropria de conceitos e formulações existentes, abrindo-os para fazer caber sua própria experiência, seu repertório individual de signos que orbitam e sustentam vocábulos compartilhados. E o observador repete o gesto, também toma para si aquilo que se revela e que recolhe, buscando seus próprios sentidos para aqueles fragmentos.
Ainda que a transferência seja o método de trabalho da artista, pois muitos dos seus desenhos – com exceção dos pintados à óleo – não são resultado da ação direta sobre o suporte que os retém, mas imagens transferidas de uma matriz – a partir da técnica da monotipia –, eles não deixam de ser únicos. Raylander não está interessada na reprodução massificada, mas no desafio de ter que, primeiro, rebater seu próprio pensamento – a técnica baseia-se no espelhamento da imagem – antes de compartilhá-lo.
Essa dimensão do processo, no entanto, não imprime em seu traço qualquer balbucio, mas cravam-se firmes como afirmações que enfrentam a resistência do meio que os suporta. Frases como “É preciso saber sonhar outro sonho” ou “Banir o registro do desejo”, revelam-se enigmáticas, fomentando derivas mais do que firmando imagens. Raylander sabe que é necessário usar o cafundó da cuca para pensar, sem meramente reproduzir os conceitos que estruturam nossa realidade.
[3] MOMBAÇA, Jota. Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021. p. 24.
[4] O termo aparece em alguns desenhos da série Trabalhos Escolares de Ana Raylander.
VI. Trans-conceitualidade
Os Trabalhos Escolares de Ana Raylander, podem ser compreendidos na esteira dos desdobramentos das práticas da arte conceitual. Raylander não encontra-se isolada, ainda que confira desenvolvimentos próprios, mas se faz acompanhar por diversos agentes que se estabeleceram no sistema artístico da última década. Artistas como Wisrah C. V. da R. Celestino, Agrippina R. Manhattan, Jota Mombaça e Castiel Vitorino, são apenas alguns exemplares dos atuais desdobramentos da conceitualidade na arte a partir de uma perspectiva não hegemônica.
Falar de práticas conceituais, todavia, não é apenas referenciar o legado de um movimento circunscrito por certo contexto histórico-geográfico específico, como aquele de onde emerge Joseph Kosuth, um dos seus principais expoentes. Diferente do positivismo de Kosuth, que via nas práticas artísticas conceituais uma superação da racionalidade filosófica, encontramos em práticas como a de Raylander a falência da razão. Ao menos, a da racionalidade do Eu Hegemônico.
O filósofo alemão Hans Blumenberg, que se debruçou sobre o estudo da metáfora, em sua Teoria da Não Conceitualidade nos lembra que a correspondência entre razão e conceito é uma relação artificial. O conceito surge pela inclinação à objetividade cuja funcionalidade está circunscrita pela sociabilidade. O conceito surge da indeterminação, da necessidade de se definir, sem, contudo, apaziguar a dúvida, pois, mesmo baseando-se em um objeto ou fenômeno material para se constituir, ele acaba por fundar um outro objeto – conceitual – que substituiu o primeiro. De modo que o conceito comporta-se como uma “representação da representação” , ainda mais quando busca delimitar abstrações como “arte”, “liberdade” e “gênero”.
Nenhum conceito é estanque. Pode vir a ser reelaborado. E a virada conceitual na arte – que confere centralidade aos discursos na depuração e construção da experiência com as obras – faz de cada manifestação artística uma proposição original do conceito Arte . Original, não tanto por trazer algo novo, mas por dar a elementos conhecidos uma articulação que sirva de ponto de partida para novas formas. Original por nela se encontrar tanto preceitos e princípios originários da arte – como expressão subjetiva e instituição histórica – quanto por engendrar processos inovadores.
A virada conceitual nas artes visuais, ou seja, o recurso à discursividade, tornou-se indissociável da produção artística a partir da segunda metade do século XX. Naquele momento, proliferam formas de expressão artística que escapam à tradição. As formas abstratas investigadas desde as vanguardas já haviam dotado a crítica de um novo vocabulário conceitual, muitas vezes de inclinações místicas – espirituais e metafísicas. No pós-guerra, a crise da razão, a fragmentação do sujeito traumático, e a ascensão do capitalismo neoliberal de caráter especulativo, o aumento exponencial da velocidade e alcance das redes de informação complexificaram as formas de expressão cultural.
Muitos artistas e críticos, desde a década de 1960, tem apontado para esse fenômeno. Em A Desmaterialização da Obra de Arte (1968) , Lucy Lippard e John Chandler apontam para a crescente desimportância da materialidade da criação artística, frente ao inflacionamento dos procedimentos conceituais que lhe servem de base, de modo que não cabia mais ao artista a obrigação de realizar sua obra. A forma não perdeu completamente sua importância, mas passou a ser recebida como expressão de uma pesquisa da qual ela participa, mas não conclui, representa, mas não unifica. A processualidade se tornou protagonista do fazer artístico. O artista libertou-se dos ditames de uma única linguagem para trabalhar com “temas”, “interesses”, desenvolvendo sua “pesquisa”.
Sol LeWitt, cuja produção converge práticas minimalistas e conceituais, faz coro ao duo de críticos, lembrando que, mesmo tendo o conceito assumido a centralidade da produção artística, isso não significa que sua matriz e objetivo são a lógica, por mais que, certas proposições podem se revestir desta aparência. Nem se trata de instrumentalizar ou ilustrar conhecimentos que devem ser transmitidos didaticamente ao público. Pelo contrário, reconhece-se a autonomia do público na reformulação dos conceitos expressos no trabalho de arte, assim como se aceita o papel da sensibilidade na construção do cognoscível, sem criar assimetrias ou antagonismos.
A arte contemporânea beneficiou-se da conceitualidade – do centramento no processo, ainda que o mercado privilegie objetos – ao abrir caminhos criativos e participativos no sistema artístico para agentes circunscritos pela escassez de materialidades. Nesse sentido, porta-se, muitas vezes, como uma espécie de crítica ao mercado, instituições e sociedade. A adversidade, na qual vivem e trabalham muitos artistas – para lembrar o refrão de Helio Oiticica – antes de ser um projeto estético é resultado das estruturas práticas e conceituais que moldam nossa sociedade e que demandam a subalternização de certos corpos e subjetividades.
Nos trabalhos de Ana Raylander a razão deve ser superada, assim como seu emprego no positivismo progressista. Na conceitualidade ela encontrou uma estratégia de enfrentamento às adversidades – materiais, culturais e logológicas – que moldam sua realidade – compartilhada por inúmeras outras pessoas. Sua prática artística é resultado e combustível de um fazer contínuo que torce termos conhecidos, que justapõem dessemelhantes, que revela as imbricações entre o subjetivo e objetivo, entre o sensível e o racional, nos lembrando que sua oposição é redutora e artificial e sonhando uma linguagem capaz de apontar existências, sem com isso delimitar identidades.
[5] BLUMENBERG, Hans. Teoria da não conceitualidade. Trad. e Intro. Luiz Costa Lima. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 81.
[6] DE DUVE, Thierry. Kant depois de duchamp. Trad. Andrew Stockwell. Arte & Ensaios. Revista do Mestrado em História da Arte EBA-UFRJ. Rio de Janeiro: 1998. pp. 125-152.
[7] O ensaio foi escrito no final de 1967, mas apareceu publicamente na edição de fevereiro do ano seguinte da revista Art International.
[8] “DA ADVERSIDADE VIVEMOS!” é a frase que encerra Esquema geral da Nova Objetividade (1967), texto de Hélio Oiticica publicado no catálogo da exposição Nova Objetividade Brasileira, no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro.
André Torres é Mestre em Linguagens
Visuais pelo PPGAV-EBA-UFRJ (2016) e
Doutor em Literatura, Cultura e
Contemporaneidade pela PUC-Rio (2023)