POR ARTUR DE VARGAS GIORGI
Nos cem anos do surrealismo, eventos e publicações retomam sua história, traçando as relações do movimento vanguardista com nossos modernismos, na literatura e nas artes visuais. Nesse panorama, que se abre ainda na década de 1920 e avança nos decênios seguintes, alguns nomes parecem incontornáveis: Cícero Dias, Ismael Nery, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Maria Martins, Flávio de Carvalho, Osório César, Bueno de Rivera, o primeiro João Cabral (mesmo que a contragosto do poeta), Murilo Rubião (a seu modo) etc.
Em comparação ao cenário europeu, esse elenco já anuncia algo importante para os comentários que tento fazer aqui: a relativa falta de coesão entre as obras de artistas e escritores que permitem situar, no Brasil, as manifestações de uma vanguarda à qual se atribuem, de modo geral, um ideário de contornos mais precisos e, sobretudo, uma notável pregnância, assegurada, em boa medida – e apesar das conhecidas disputas e dissidências –, por experiências compartilhadas. Ou seja, dificilmente poderíamos sustentar que houve no país um movimento coletivo análogo ao surrealismo europeu, considerando sua capacidade de agenciamento e seu impacto na cultura.
Se a mesma diferenciação valeria para outras aclimatações locais das vanguardas europeias, no caso do surrealismo a distância parece ser ainda mais marcada. E neste ponto poderíamos colocar algumas interrogações que nos permitem refletir sobre as forças que mantinham a cultura brasileira hegemônica algo avessa às linhas tensoras do surrealismo.
Afinal, como acolher, aqui, o caráter revulsivo que animava suas práticas, isto é, o espírito de contestação não só às artes, mas a tudo que dizia respeito à sociedade e à vida burguesas? Como levar adiante, num país em plena luta pela modernização, ideias contrárias à própria lógica da ordem, do progresso e ao uso instrumental da razão? Como, numa nação em construção, fazer valer as palavras do primeiro manifesto de Breton, segundo as quais só depende do homem “se possuir totalmente, quer dizer, manter em estado anárquico o bando cada dia mais temível de seus desejos”? Enfim, de que modo sustentar, como uma orientação para experiências compartilhadas, a vertigem, a alucinação, o sonho, o vazio?
Na Europa, após a Primeira Guerra e o escândalo dadaísta, constatamos a expressividade do surrealismo não só em manifestos, revistas, quadros, livros, objetos, relatos, filmes, polêmicas, ou seja, não apenas pelo que os artistas de fato produziram, mas também em negativo, digamos: na intensa ação reativa, através dos numerosos artistas e intelectuais que buscaram barrar o efetivo avanço do movimento surrealista, como aqueles reunidos em torno do universalismo construtivo do grupo Círculo e Quadrado, liderado por Torres-García e Michel Seuphor, e da vanguarda da arte concreta, na virada para a década de 1930.
Ora, no Brasil, foram justamente os valores ligados à ordem e à construção – e não à beleza convulsiva – que acumularam vitórias significativas nas batalhas pela representação da cultura moderna. Em outras palavras, podemos dizer que, diante da precariedade material e simbólica que conformava a nossa modernidade, foi o horror ao vazio e à anarquia dos desejos que embasou os projetos hegemônicos do Estado intervencionista e da intelectualidade esclarecida que girava ao seu redor. E, com efeito, se retomarmos o itinerário de certas figuras, num arco que vai do final da década de 1920 até o concurso e a construção de Brasília, veremos esses projetos articulados de uma maneira muito mais coesa do que quaisquer manifestações disruptivas devedoras de proposições surrealistas.
Pensemos, nesse sentido, no contato de Le Corbusier, que participaria do grupo Círculo e Quadrado, com o núcleo modernista de São Paulo e em sua ronda pelo Cone Sul: com passagens decisivas pelo Rio de Janeiro, foram essas as oportunidades que consolidaram o racionalismo do chamado Estilo Internacional – construtor de casas que funcionavam como “máquinas de morar”, segundo Le Corbusier, livres de gratuidades decorativas – entre os arquitetos que orbitariam o ministério de Gustavo Capanema e, depois, o governo de Kubitschek.
Isso quer dizer que, desde 1929 e 1936, numa articulação entre estética e política, são geradas as condições para que, ao final da década de 1950, Lúcio Costa e Niemeyer pudessem ser aclamados oficialmente como campeões do planejamento arquitetônico no Brasil, os mais capacitados, portanto, para concretizar a modernização do país por meio da construção de uma nova capital, genuinamente moderna, sobre o “vazio” do sertão.
Reforça esse cenário a legitimação da arte concreta (e da abstração geométrica) conduzida por instituições, eventos, artistas e críticos, desde o encerramento da década de 1940. Afinal, é nesse período que vemos a fundação de espaços decisivos para a modernização da cultura brasileira, como o MASP, o MAM-SP, o MAM-RJ e a Bienal de São Paulo; é quando registramos a presença, em torno desses eventos e instituições, de figuras influentes como Léon Degand, Romero Brest, Max Bill, Tomás Maldonado, defensores da depuração formal, do rigoroso exercício compositivo e do ordenamento da sensibilidade, acompanhados então de interlocutores como Sérgio Milliet, Waldemar Cordeiro e, sobretudo, Mário Pedrosa, que logo condenaria o irracionalismo e o subjetivismo que pareciam irromper em certas tendências artísticas assediando o “esforço construtivo que devia estar na cultura brasileira”.
O sumário panorama não esgota o problema, é claro. Mas talvez sirva para destacar a tensão entre os ideários e a relativa blindagem da cultura contra proposições avessas a esse esforço construtivo e conciliatório que concentrou, com a legitimação do Estado e da burguesia, as representações oficiais da modernidade. Com tal agenciamento entre estética e política, modernismo e modernização, a força disruptiva de uma vanguarda como o surrealismo viu-se confrontada pelas formas tributárias da vontade ordenadora da razão.
Vale recordar o surrealismo acéfalo de Georges Bataille, que em 1929 registrou num verbete intitulado “Arquitetura”: “os grandes monumentos se elevam como diques, opondo a lógica da majestade e da autoridade a todos os elementos perturbadores: é sob a forma das catedrais e dos palácios que a Igreja ou o Estado se dirigem e impõem silêncio às multidões”. Por isso, para Bataille, tratava-se de fazer ruir o poder dos homens que conduziam a história vitoriosa do Ocidente: “quando se ataca a arquitetura, cujas produções monumentais são atualmente os verdadeiros senhores da terra inteira, agrupando à sua sombra multidões servis, impondo a admiração e a estupefação, a ordem e a obrigação, ataca-se de alguma forma o homem”.
No entanto, por via de regra, no Brasil moderno oficiou o monumento, sendo Brasília o seu ápice; quer dizer, prevaleceu aqui a lógica da autoridade, com sua simbologia e eloquência acachapantes. E, contudo, é exatamente por isso, e em meio a essas mesmas condições históricas e culturais, que os elementos perturbadores devem ser buscados e explorados.
Ismael Nery e Murilo Mendes fizeram coincidir surrealismo e cristianismo (de um modo que escandalizaria um surrealista como Benjamin Péret). Flávio de Carvalho, um “revolucionário romântico”, como o definiu Le Corbusier, e que esteve em contato direto com dadaístas e surrealistas (como Tzara, Man Ray, Breton), atendeu a premissas do surrealismo em diversas obras, enquanto seus projetos arquitetônicos eram afinados com o racionalismo das fórmulas modernistas. Já Maria Martins encontrou no inconsciente da selva, isto é, na realidade telúrica dos trópicos a matéria mais propícia para o exercício surrealista da metamorfose (chamando a atenção de Péret, Breton, Césaire). Etc.
Tais artistas nos mostram o caráter convulsivo do surrealismo, que seria mesmo intensificado em algumas de suas manifestações locais, quem sabe em razão das suas inescapáveis contradições internas. Atravessando os tempos, a força desses gestos não é diminuída: entre as genealogias impuras, feitas de forças enfrentadas, de elementos díspares, operam as vias de descentramento da história – supostamente ascendente – da modernidade ocidental.
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