Sheila Oliveira

Sheila Oliveira: Transitoriedade ‘barroca’

A artista, a partir do próprio corpo e da família, incorpora referências que atravessam diferentes épocas e tradições visuais, empregando elementos que transitaram do ‘renascimento ao barroco’ aos elementos contemporâneos de composição, inventando um vocabulário visual que desafia qualquer leitura homogênea e compartimentada.

Por Fabrício Reiner

O debate sobre a noção de barroco entre João Adolfo Hansen e Haroldo de Campos nos jornais dos anos noventa do século passado tornou-se um dos embates críticos mais emblemáticos da literatura brasileira, mobilizando distintas visões sobre a tradição poética e critérios de autoria. A polêmica ganhou espaço nas páginas do suplemento literário da Folha de S. Paulo, em 1996, quando ambos discutiram a poesia atribuída a Gregório de Matos. Haroldo de Campos, em seu artigo “Original e revolucionário”, defendia a ‘inegável originalidade’ do poeta baiano, posicionando-o como um dos precursores da poesia nacional. Já Hansen, em “Floretes agudos e porretes grossos”, questionava essa leitura ao argumentar que os conceitos modernos de plágio, intertextualidade e originalidade, herdados do iluminismo e do romantismo, eram inadequados para interpretar a poética do século XVII. Segundo Hansen, as práticas letradas seiscentistas não se fundamentavam em uma ideia de individualidade criadora, mas em uma dinâmica coletiva de produção textual, marcada por apropriação e circulação das artes e das letras. A controvérsia evidenciou um confronto de perspectivas entre a leitura contemporânea de Haroldo de Campos, que via Gregório de Matos como um poeta singular e inovador, e a crítica filológica de João Hansen, que situava sua obra em um contexto de escritura compartilhada, em que a autoria era uma construção histórica e não um valor absoluto.

 Parte dessa crítica acertada de Hansen se estendia à própria noção de barroco, que, segundo o professor, não seria um estilo ou uma periodização histórica propriamente dita, mas uma formulação romântica posterior, consolidada sobretudo no século XIX. Hansen argumentava que a categoria ‘barroco’, tal como empregada para definir um conjunto estético e filosófico, foi em grande medida uma construção dos estudiosos modernos, que reconfiguraram o passado seiscentista a partir de suas próprias preocupações ideológicas. Nesse sentido, a ideia de barroco teria sido reificada por leituras historicistas que enxergaram nas produções do século XVII uma unidade estilística e uma identidade própria, projetando sobre elas interpretações que não estavam ali presentes. O professor apontava que as representações seiscentistas não reconheciam a si mesmas como ‘barrocas’; essa classificação veio posteriormente, sob a influência do pensamento iluminista e da crítica romântica, que interpretou o período em oposição ao classicismo e aos valores do racionalismo acadêmico.

Em certo sentido, parte dessa posição que Hansen sugeria sobre a inadequação da noção de autoria individual e originalidade, tal como concebida na modernidade, pode servir de ponto de partida para uma reflexão possível da obra de Sheila Oliveira; uma vez que a artista parece reverberar em seus trabalhos essa diluição, ao questionar os limites da criação e da assinatura artística. Fotografia que não apenas tensiona os conceitos de identidade e subjetividade, como ainda evidencia a imagem que se constrói por meio da apropriação, deslocamento e ressignificação.

A artista, a partir do próprio corpo e da família, incorpora referências que atravessam diferentes épocas e tradições visuais, empregando elementos que transitaram do ‘renascimento ao barroco’ aos elementos contemporâneos de composição, inventando um vocabulário visual que desafia qualquer leitura homogênea e compartimentada. Suas imagens evocam um espaço de contaminação simbólica, onde a autoria não se concebe como gesto isolado, mas como uma rede de significados que são constantemente redefinidos. E, com efeito, manifesta-se como um espaço de investigação visual que se inscreve na ideia de transitoriedade, não apenas estética, mas como uma espécie de mecanismo filosófico de deslocamento entre presença e ausência, entre permanência e dissolução. Essa ideia, que atravessa as representações do assim chamado barroco histórico até as reinterpretações tidas como neobarrocas, ressurge em sua produção como um movimento simbólico em que a fotografia deixa de ser mera captura do instante e passa a encenar uma tensão ontológica, explorando a fragilidade da forma e a evocação da finitude da existência.

A série “Anotações herméticas” exemplifica essa lógica ao utilizar o símbolo da concha, que remete ao caramujo ermitão e à Amonita pré-histórica, evocando simultaneamente proteção e exposição, interioridade e permanência; dualidade que se faz central à transitoriedade dita barroca: na qual a noção de tempo não se configura como fluxo homogêneo, antes como espaço de repetição e ruptura, onde o passado e o presente dialogam sob uma lógica de emulação e superação.

No seiscentismo, a representação do tempo era ordenada pela providência divina, como observado nos escritos inclusive do Padre Antônio Vieira, e nela os tempos se repetem, até o dia do juízo; portanto, nessa concepção, é possível dizer que os momentos históricos reiteram no futuro as dinâmicas do passado. Em Sheila Oliveira, entretanto, há tensão nessa previsibilidade. Ainda que a artista, ‘barrocamente’ não a negue, pois que a repetição reitera um espaço de deslocamento imagético, sua fotografia encena o que poderia ser compreendido como fragmento de tempo em colapso, onde a narrativa nunca se completa, já que está sempre em suspensão.

Esse princípio se desdobra também na série “De onde emergem os nervos”, na qual a artista investiga a transmutação do corpo, o desapego físico e a reconstrução simbólica da imagem. A cor, que transita ora entre o suave o intenso, e a duplicação dos gestos evocam um ‘barroquismo visual’, no qual a representação se desdobra e se nega para afirmar uma nova existência. Aqui, Sheila opera a repetição não como a reafirmação de um significado único, mas como o deslocamento constante de identidade, sugerindo que o corpo, como a história no século XVII, não se fixa, pois persiste em um processo ininterrupto de transitoriedade.

Esse pensamento se intensifica na presença de uma iconografia do renascimento, reapropriada não como referência nostálgica, mas como um dispositivo filosófico que reforça sua intenção de dialogar com estruturas visuais que sobrevivem ao tempo. Assim como o seiscentismo transformava figuras e símbolos em alegorias sobre a passagem da vida, a fotógrafa converte seus elementos imagéticos em metáforas da transitoriedade, evidenciando que, na fotografia, mesmo quando captura um momento único, permanece a manifestação do fluxo de tempo e nunca sua interrupção.

Por outro lado, ao convocar o espectador para uma leitura mais intuitiva e subjetiva, rompendo aqui com a noção ‘barroca’, uma vez que a subjetividade é categoria de análise moderna, Sheila Oliveira propõe a fotografia como registro de identidades instáveis e dependentes. Sua obra questiona, neste instante, a ‹fixação da forma, revelando que toda imagem carrega um estado de passagem e transformação, no qual o sonho, a imaginação e a realidade se sobrepõem em um jogo de aparências, presença e desaparecimento.

Nesse aspecto a obra da fotógrafa se afasta do ‘barroco’ para se aproximar do surrealismo, especialmente da noção que buscava acessar os territórios do inconsciente, do sonho e do acaso. Ao explorar imagens que desafiavam a percepção costumeira da realidade, criando composições enigmáticas, simbólicas e irreais, a fotógrafa propõe a fusão entre elementos cotidianos e atmosferas oníricas com fim a construir narrativas visuais que parecem emergir do subconsciente, revelando uma lógica interna própria que não se limita pelas convenções do pensamento racional. Seus trabalhos não apenas capturam e processam imagens, mas as compõem de forma a instaurar uma sensação de estranhamento e ambiguidade, criando atmosferas que desafiam qualquer interpretação literal. 

Em “Correspondências visuais” a artista, ao se apropriar de elementos diversos, inclusive de símbolos estabelecidos, como o do relógio ou do ovo, por exemplo, propõe que suas imagens não sejam apenas observadas, mas experimentadas como vestígios de um inconsciente visual, onde o tempo, a identidade e a corporeidade se tornam fluídos e instáveis. Do mesmo modo, em sua série “Entre nós”.

Essa dimensão contemporânea da obra de Sheila Oliveira, porque subjetiva e simbolicamente abrangente, não contradita sua intuição ‘barroca’; antes a reforça, dialeticamente. Não apenas porque comenta os artistas antigos, mas sobretudo porque se utiliza de seus preceitos e vocabulários de imagens. O tempo, para artista, assim como viam seus contemporâneos seiscentistas, não se vê como progressão, mas como acúmulos onde as obras e os gêneros artísticos servem de matéria para novas imitações: reinscrevendo, repetindo e variando os preceitos do passado em uma constante elaboração elocutiva dos seus predicados.

É o caso da série “Caixa de desapegos”, em que Sheila Oliveira intensifica sua investigação sobre a transitoriedade da identidade ao coletar objetos esquecidos em gavetas, solicitando que amigos escolham aqueles que os representam de alguma forma. Esse gesto transforma cada objeto em uma espécie de vestígio do afeto e da memória, um índice do que foi vivido e, ao mesmo tempo, do que está prestes a se perder. Ao deslocar esses itens do cotidiano para um espaço de recomposição simbólica, a artista materializa visualmente a fragilidade da identidade e a impermanência dos vínculos, reforçando a ideia de que não somos fixos, mas transitamos entre camadas de experiência e pertencimento.

Dessa maneira, Sheila rompe com qualquer ideia de subjetividade estabilizada, subvertendo a relação ordinária entre o objeto e seu dono. Se, tradicionalmente, a posse de um objeto sugere pertencimento e continuidade, aqui os itens são retirados de seu contexto íntimo e ressignificados na composição fotográfica. Esse deslocamento ressoa um território de inconstância, onde formas e significados se acumulam e se dissolvem.

O que permanece é a memória. É necessário, contudo, estabelecer aqui uma
distinção entre memória artificial e memória subjetiva, compreendendo que a primeira opera como uma técnica estruturada para arquivar lugares-comuns, formular novos argumentos e dramatizar sujeitos de enunciação e destinatários. Ao longo do século XVIII, retomando as proposições do professor Hansen, o romantismo reprimiu essa forma de memória, reduzindo-a a tropos psicologizados, desvinculados de sua função combinatória e retórica original. Na antiguidade, a memória artificial estava profundamente ligada à concepção do tempo e da invenção nas artes antigas, fundamentando-se na ideia de que a totalidade dos enunciados e das palavras podia ser reduzida a um número finito de elementos, aplicados de forma sistemática. A figura do alfabeto exemplifica esse princípio: um conjunto restrito de signos capaz de expressar qualquer construção verbal. Em Sheila Oliveira, especialmente nessa série, há procedimento análogo: glossário limitado que opera de modo a produzir infinitas possibilidades de enunciação. O que diferencia a concepção seiscentista da produção contemporânea, nesse caso, é que a artista aproxima duas possibilidades distintas de usos da memória, seja ela a artificial ou a subjetiva.

Ao trabalhar a fotografia como um espaço de recombinação e desdobramento, Sheila Oliveira não apenas dilui a ideia de autoria e da memória no diálogo com referências históricas, como ainda amplia a própria natureza da imagem à intertextualidade visual, onde as formas e signos não pertencem a um tempo único, já que circulam continuamente entre diferentes momentos e percepções.

Sua fotografia captura um instante, e compõe uma mise-en-scène pendular, uma representação entre o ser e o deixar de ser. Abordagem que reflete a instabilidade da matéria, presente inclusive nas reflexões ditas barrocas, na qual a imagem carrega consigo sua própria ruína, na qual se alinha visão de mundo onde a forma nunca é definitiva, pois manifestação provisória de um processo maior, que a transcende. A presença da sobreposição, da performance e da repetição de objetos em sua produção revela um desejo contínuo de deslocamento e construção de sentido. Esse movimento remete à estrutura dialética da imagem, que se torna inscrição do tempo, da passagem e da experiência, reafirmando sua fotografia como campo filosófico, onde as imagens não são meros registros, mas processos de pensamento.

Na época em que as imagens são frequentemente reduzidas a instantâneos sem profundidade, Sheila Oliveira propõe uma fotografia que reflete sobre sua própria materialidade e sobre os sentidos que carregamos na transitoriedade da existência. Ao explorar o corpo e suas metáforas, ela nos conduz a uma reflexão sobre a transformação, a efemeridade e o movimento contínuo da percepção. Esse trânsito entre temporalidades também implica a necessidade de um vocabulário específico para ler sua obra. Oliveira se apropria de símbolos que carregam uma carga semântica complexa, exigindo um olhar que vá além da leitura puramente estética da imagem. Seus trabalhos não podem ser simplesmente observados; precisam ser interpretados como fluxos, como fragmentos de um discurso que se refaz a cada reapropriação.

E se, conforme as proposições de João Hansen, o barroco não deve ser compreendido como um movimento autônomo, mas como uma formulação posterior que projeta categorias externas sobre o século XVII, sua interpretação legítima precisa ser conduzida a partir dos preceitos que ele próprio instituiu. Da mesma forma, a obra de Sheila Oliveira não pode ser reduzida a leituras que a delimitem a um sistema consolidado, pois se estrutura sobre uma lógica interna que exige que seus signos sejam lidos dentro da própria dinâmica que instauraram.

Fabrício Reiner é mestre em Filosofia com especialização em Culturas e Identidades Brasileiras (2016) e Bacharel em História (2005), ambos pela Universidade de São Paulo, aperfeiçoou-se em museologia e história da arte em Siena (2008). Desenvolveu e participou de diversos projetos acadêmicos e curatoriais junto a Biblioteca Mário de Andrade, Biblioteca Guita e José Mindlin e o Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Doutorando em História da Cultura pela USP, atua como pesquisador e curador independente.

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