POR ARTUR DE VARGAS GIORGI
A arte de Nuno Ramos parece tender para baixo. Em suas obras, quase sempre há elementos que evidenciam seu peso, seja ele material ou simbólico; e as coisas – que não raro são densas, opacas – escorrem, atolam, caem, são enterradas ou alagadas. Dizer que seus trabalhos são belos (ou feios) não seria acertado. A meu ver, as categorias da disciplina estética – ligadas à contemplação e aos juízos subjetivos – não se afinam com o que o artista produz. Mas, no caso de haver beleza (ou feiura) em suas obras, ela seria sem dúvida uma beleza estranha: uma beleza decadente, digamos.
No entanto, também seria um equívoco ver em seus trabalhos apenas a elaboração matérica dos modos de ceder à gravidade e ao decaimento. Isso porque, junto a essa força grave, lapidária, que tantas vezes, de fato, gira em torno do rebaixamento material e da morte, há igualmente uma leveza que se quer ascendente e que se expressa em grandes volumes verticais, em instalações e estruturas erguidas a partir do solo, na transparência de vidros, na imagem do voo (de pássaros, de aviões), na música que ressoa pelos ambientes e em outros elementos quase imateriais.
Na verdade, creio que suas obras mais expressivas são mesmo aquelas em que essas duas forças contrárias atuam conjuntamente, operando uma tensão irresoluta, uma disposição ambivalente, como a que ocorre, aliás, nos sentimentos mais complexos e nos impulsos mais intensos do corpo e do espírito. Assim, quem passar em exame a longa trajetória do artista não deixará de encontrar os variados exemplos dessa tensão, que atravessa certas obras por inteiro, dos títulos aos materiais utilizados, envolvendo ainda os diálogos estabelecidos, especificamente, com os locais expositivos.
Em síntese: em Nuno Ramos, fim e começo, destruição e construção, abandono e enlace coincidem como motores simultâneos de obras que elaboram, de diferentes formas, as paixões humanas: paixões de morte, de vida. Para dizer de outro modo, nas palavras do próprio artista: “gosto de poças e pantanais, animais apodrecendo, sólidos que afundam, tudo o que logo desaba – mas, estranhamente, queria fixar isto”.
Poderíamos salientar a recorrência desse desejo, ao mesmo tempo tão familiar e estranho, entre esculturas, instalações e séries de desenhos, como 111 (1992), Aqui jaz (1992), Lajes (1995), Matacão (1996), Manorá branco (1997), Manorá preto (1999), Maré mobília (2000), Maré caixão (2000), Luz negra (2002), Manorá vermelho (2004), Morte das casas (2004), Monólogo para um cachorro morto (2008), Fruto estranho (2010), Munch (2011), Globo da morte de tudo (2012), Três casas (2012) etc.
A respeito de Casco (2004), obra escultórica que envolve restos de barcos, areia queimada prensada e breu, e que se desdobra ainda em um vídeo de mesmo título, Paulo Venâncio Filho escreveu: “É uma areia dura, pesada, boa para fazer castelos. Então, por que não barco? Barco de areia; encalhado já nele mesmo. Barco-túmulo do barco na areia frágil e dura, escura. […] O nome próprio da morte já está inscrito no barranco, vala, aterro, murada, matacão, nestes futuros túmulos. Na instabilidade do arranjo, que é afinal o resultado do trabalho, está presente o desastre em suspensão […]”.
Trata-se de um comentário preciso, que a meu ver poderia ser expandido para dar contorno à fatura do artista, delineando seu princípio operatório. É o que vemos acontecer, também, na instalação que agora inaugura a nova sede do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul (MAC RS), localizada no 4º Distrito de Porto Alegre (“Três Casas”, curadoria de André Severo, até janeiro de 2026). Nesse espaço marcado pela enchente de 2024, que arrasou a região, Nuno Ramos retoma uma obra de 2012, constituída por réplicas, em tamanho natural, de três casas que fazem parte de sua biografia, mas que são profundamente ressignificadas em razão da nova situação expositiva.
Telhados e pedaços de fachada surgem em uma espécie de atoleiro que recobre as grandes covas escavadas no próprio piso da galeria. Não sabemos se afundam, se emergem. Feitos em mármore, granito e areia, esses restos de casas, como fragmentos da memória, estão em luta, parece, contra o decaimento e a ruína: resistem, talvez, e buscam alçar-se, enquanto já se abandonam, em silêncio, à opacidade da lama do entorno (branca na casa de mármore, preta na casa de granito e marrom na casa de areia).
Há um sentido lapidar – do fim inscrito na pedra, do término cavado no chão – que pode ser facilmente lido na exposição: nos materiais da instalação, no arranjo indeciso das casas em meio à lama, no contexto histórico recente, que assoma, incontornável etc. No entanto, esse sentido logo se reveste do seu contrário: cobre-se do apuro e do investimento exigidos na lapidação do porvir, isto é, do trabalho que talha, na pedra bruta, o abrigo requerido, como obra de um esforço coletivo concentrado, precisamente, na elaboração do recomeço.
É assim que a última morada coincide com a primeira, assim como a memória individual se articula, intimamente, enfim, com a vida em comum. Entre paixões de morte e de vida, como se fixados, em suspensão diante do afundamento, eventualmente somos erguidos pela vontade de enlace, de criação. Chega o momento em que as águas recuam. Aos poucos ressurgem, então, uma, duas, três casas, e de novo a rua, e outra passagem mais…
Artur de Vargas Giorgi é Professor de Teoria Literária
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq



