POR ARTUR DE VARGAS GIORGI
1.
O texto Sobre a Arte Contemporânea, de César Aira, apresentado em 2010 num colóquio ocorrido em Madri, pode ser um bom ponto de partida para pensarmos o estado das artes visuais num arco temporal que se estende, para alguns intérpretes, desde os anos 1960; para outros, desde os anos 1970 ou 1980; ou seja, um período já bem longo, seja qual for o marco inaugurador escolhido.
Aira ativa suas considerações a partir de memórias dos anos 1960, em torno do seu interesse por revistas de arte, do renovado protagonismo de Marcel Duchamp no cenário internacional e da relação das artes com a literatura, prática que, para o escritor, diz respeito à fabulação narrativa dedicada à inscrição do ausente, como uma “ponte de prata estendida entre o feito e o não feito”. Nesse sentido, as artes visuais e a literatura são meios de fazer proliferar o mínimo, o insignificante, “em todas as direções de um contínuo multidimensional”, uma ideia que de fato se ajusta muito bem à literatura produzida pelo autor.
Para Aira, como para outros críticos, a arte contemporânea tem seus traços próprios, temporais e estilísticos, embora, paradoxalmente, o tempo em questão seja o de um presente suspenso, sem devir, e o estilo, sem qualquer caráter de integração ou especialização, seja o da mais radical e coincidente heterogeneidade.
2.
Uma abordagem muito próxima, em chave celebratória, pode ser encontrada em Arthur Danto, que é citado por Aira. Com efeito, em Após o fim da arte, também Danto aponta o marco temporal dos anos 1960, o fim da teleologia moderna, as figuras centrais de Duchamp e Warhol, e, especificamente, o aspecto não-retiniano ou não-perceptual da arte contemporânea, mais caracterizada, segundo autor, por sua dimensão filosófica ou “pensável”: se, já na década de 1960, nada visual podia explicitar a diferença entre o que estava na galeria e o que estava no supermercado, isso implicava, para Danto, que para descobrir o que era a arte “seria preciso voltar-se da experiência do sentido para o pensamento”.
Em jogo está a tão debatida noção hegeliana de “fim da história”, que é retomada por Danto para a compreensão do “fim da arte”, ou de uma arte “pós-histórica”, na contemporaneidade. O que se propõe a partir de Hegel é que, no percurso dialético do Espírito Absoluto, o papel da arte teria se encerrado com a emergência do Estado moderno, que enfim reconhece e prevê em seu sistema de leis universais as alteridades que antes dependiam da mediação formal da arte para serem percebidas como tais. Assim, a triunfante forma da lei no Estado moderno, a priori acolhedora de todas as formas e suas liberdades, privaria a arte do seu papel de inscrição da diferença numa história das representações, transferindo a sua ação da realidade imediata para as nossas ideias e os nossos juízos.
Analogamente, para Danto, a arte contemporânea, ao menos desde Warhol, teria realizado esse mesmo feito: uma vez já reconhecidos e acolhidos, como “lei universal” do campo artístico, todos os materiais, objetos e aparências, a arte deixaria de servir às representações formais, estando livre para assumir a sua verdadeira natureza filosófica, acessível intelectualmente.
3.
No texto de Aira, esses desdobramentos filosóficos podem ser lidos apenas nas entrelinhas. Mas estão ali, como princípio para a proliferação fabulatória, entre o feito e o não feito. Também no argumento de Aira a arte contemporânea marcaria um ponto de suspensão ou de esgotamento da teleologia moderna: o ponto, portanto, em que as narrativas a respeito da evolução das formas como meta ou fim da história da arte perdem sua capacidade reguladora e orientadora, dando lugar a uma proliferação de ações e leituras estacionárias, e ao que parece inesgotáveis, já que estendidas sobre um “agora” que se esquiva de uma perspectiva histórica sobre o que viria “depois”.
Além disso, como “realização lisa e plena no presente”, o contemporâneo nas artes seria também o ponto em que a busca pela segmentação do fazer e pela autonomia das linguagens dá lugar a uma expansão contínua dos meios, trabalhados a partir de uma releitura sempre renovável, pois propositivamente incompleta, do repertório formado pelo arquivo do moderno: trata-se, nos termos de Aira, de “uma arte de formatos, uma épica de formatos em fuga”, segundo a qual o mais importante é o “roteiro da fábula” a ser contada, ou seja, o que se pensa ou imagina a partir da arte, para além da materialidade das obras ou de suas reproduções.
4.
Para Aira, esse “plano de tempo achatado, contemporâneo de si mesmo”, conformado sem o confronto do gosto que depende da sucessão de estágios formativos, é igualmente o espaço global onde “prolifera, inabordável, inumerável”, a arte contemporânea. Mas, apesar da costumeira fina ironia que atravessa seu texto e traz algum desconcerto à leitura, Aira afinal registra com seu panorama um elogio ao presente estado da arte. O final da exposição é claro a respeito. Retomando o mito de origem que é a figura de Marcel Duchamp – “o modelo ou a ideia de tudo que se faz ou se pode fazer” –, o escritor afirma:
“Não é objetivamente certo que Duchamp tenha feito tudo, mas com algum engenho se pode sustentar tal ideia, utilizando não só os artefatos criados por Duchamp mas também seus gestos, anedotas e todo elemento biográfico disponível. Então, sim, é possível afirmar que ‘Duchamp já fez isso’, e o que faz o Artista Contemporâneo é uma pequena fração de 0,01% ao 99,9% que realizou Duchamp. Mas esse mínimo, justamente por ser tão mínimo, deixa muito espaço livre para seguir fazendo. Houve uma atomização que se parece a uma liberação, e se abriu um espaço de manobras de uma amplitude nunca vista antes. Já nada estorva ou incomoda com o seu tamanho, todo o debate se dá entre mínimos. Não há mais Picassos nem a angústia das influências. A excepcionalidade do gênio ficou encapsulada em uma figura do passado, deixando livre o presente para os deslocamentos de uma constelação de excepcionalidades provisórias e parciais”.
5.
Ora, em torno desse “pensável” da arte, não deixo de pensar que o relato de Aira, se deslocado para um campo que não é o próprio da arte, mas que há tempos confina com ele, pode funcionar como uma descrição elementar do cenário político-cultural do mundo neoliberal. De fato, com a globalização do capitalismo, houve “uma atomização que se parece a uma liberação”, como diz Aira, “e se abriu um espaço de manobras de uma amplitude nunca vista antes”.
Assim, em meio a uma infinidade de públicos, pautas e particularismos, já “nada estorva ou incomoda com o seu tamanho, todo o debate se dá entre mínimos” que buscam garantir cada pequena fração do que estiver disponível num mundo já 99,9% explorado. Mas ainda há “muito espaço livre para seguir fazendo” – é o que também escutamos seguidamente, como profissão de fé, da cartilha dos empreendedores.
E se hoje já não há mais grandes gênios, e mesmo os supostos líderes se afirmam como imagem (não raro feita de platitudes), temos garantida, é claro, a fluidez dos “deslocamentos de uma constelação de excepcionalidades provisórias e parciais”. Ou em outros termos: no presente nos livramos da “angústia das influências” para ficarmos, por exemplo, com o grande mercado dos influencers, esses performers-padrão, mas de todos os tipos e para todas as coisas, e que em geral, como autoempreendedores, monetizam como podem os simulacros das suas existências-relâmpago.
6.
Tentativa de síntese: a valer a descrição feita por Aira, poderíamos dizer, aliás sem surpresa alguma, que a arte contemporânea e o capitalismo tardio ou global funcionam de maneira análoga. Os princípios operatórios, por assim dizer, são em grande medida os mesmos e, como apontou Fredric Jameson (em “A estética da singularidade” e outros trabalhos), estão baseados, sobretudo, no presentismo sem termo, na livre concorrência das diferenças e no agenciamento, sempre singular e efêmero, de um repertório já acumulado de imagens, conceitos e procedimentos: assim se ativam novos acontecimentos (contratuais e artísticos), esses “formatos em fuga” que, muitas vezes, são abstratos – como especulações desprendidas do mundo que, enquanto isso, segue sendo exaurido –, mas promotores de roteiros para fábulas rentáveis como o capital fictício.
Nesse sentido, hoje, a potência fabulatória da arte é confrontada com a sua própria impotência diante de um mundo em que o “pensável” é mais uma das moedas correntes, uma das mais fortes, aliás. Se nada mudar, portanto, teremos após o fim da arte, como após o fim da história, a continuidade desse cenário escatológico em que há décadas já vivemos: um fim do mundo alongado, estendido, proliferante, inabordável, inumerável, atomizado, liso e pleno, em todas as direções de um contínuo multidimensional… consumindo a si mesmo em um consumismo sem fim ou possibilidade de renascimento.
Em tais termos, falta otimismo ao cenário, certamente. Mas – não custa frisar – os termos não são meus. Eu apenas os articulei, pensando, no caso, na importância da meta, da finalidade a ser retomada, se ainda for tempo e para que haja um depois: trata-se não apenas do pensamento ou da imaginação, mas também da prática, da atividade, da efetiva construção das formas que possam nos levar a outro fim: o fim da exploração do mundo regulada pela “lei universal” do capitalismo planetário.
Artur de Vargas Giorgi é Professor de Teoria Literária
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq

