Por Fabrício Reiner
Em 14 de fevereiro deste ano a revista Dasartes publicou uma resposta de João Candido Portinari à resenha que a crítica de arte britânica Laura Cumming fez a respeito da mostra Brasil! Brasil! The birth of modernism exibida no Royal Academy of Arts de Londres. Portinari argumentou, indignado, entre um ou outro rompante de patriotismo, que a declaração de Cumming, ao sugerir que os leitores do The Guardian seriam incapazes de nomear artistas brasileiros importantes, dada sua insignificância, estendeu esse desdém à história do próprio Brasil, descrevendo-o como “uma nação convulsionada por ditaduras e golpes”, entre outros disparates. Além disso, segundo ele, sua avaliação desconsidera a rica herança cultural que permeia essas produções artísticas e ignora, como poucos, a riqueza da arte brasileira.
Se por um lado fica evidente e justificada a indignação visceral daquele que vivenciou um dos maiores nomes da arte brasileira da primeira metade do século XX e que, por diversas razões, inclusive políticas, tornou-se o principal representante da arte brasileira entre os anos de 1940-50, por outro, é necessário que se estabeleça algumas considerações menos apaixonadas a cerca de uma história repleta de contradições e que a referida mostra foi incapaz de aglutinar de maneira convincente.
A história do modernismo brasileiro, como já se debateu à exaustão, é bastante recente, remontando, principalmente, ao início dos anos 1950. Em 1953, próximo ao trigésimo aniversário da Semana de Arte Moderna, o modernismo garantiu reconhecimento oficial quando o então presidente Getúlio Vargas exaltou seu impacto em discurso à nação. Desde então, o movimento foi apropriado pela narrativa histórica oficial como um símbolo de renovação e rebeldia nas artes e na cultura brasileira, rompendo com o academicismo do século XIX e com o conservadorismo cultural, sobretudo das elites rurais.
Dado o início da República e a consequente industrialização, as elites dirigentes identificaram a necessidade de uma renovação cultural que refletisse um país moderno, capaz de afirmar sua presença no cenário mundial com uma cultura própria. Nisso, a aspiração por uma arte de caráter nacionalista foi interpretada politicamente como a unificação das diversas etnias e culturas de um Brasil miscigenado. Entretanto, a tentativa de sintetizar a complexidade da cultura brasileira por meio de diversas tradições e identidades exploradas por uma elite privilegiada não conseguiu atenuar as brutais desigualdades sociais (que ainda persistem). Divergências estéticas e políticas entre os modernistas levaram, com o tempo, à busca por expressões individuais marcadas por idiossincrasias, embora ainda permaneça a impressão geral de que essas ‘novas’ formas de criação tenham sido capazes de equilibrar as influências estrangeiras em uma arte genuinamente brasileira, moderna e única.
Não é de se espantar que a crítica de arte britânica ignore a complexidade da história da arte de um país tão complexo que dificulta a análise inclusive daqueles que dedicaram uma vida ao tema do modernismo e ainda se debruçam sobre questões intricadas. Entretanto, era de se esperar que alguém que se ocupe das artes de maneira geral tivesse um pouco mais de responsabilidade com o próprio objeto de estudo e que demonstrasse inclusive o domínio de perspectivas teóricas mais recentes e contundentes sobre o tema.
Ainda que se possa descontar uma preferência editorial de jornais como o The Guardian, que privilegiam abordagens com intuito de atrair a atenção do público por meio de conteúdos sensacionalistas e muitas vezes simplificados, assim como a escolha questionável da autora de atribuir ‘estrelinhas’ às mostras que frequenta, o que se depreende do artigo é uma profunda incompatibilidade intelectual com a maior parte dos teóricos da cultura, especialmente os pós-estruturalistas; e reforça, em última análise, as estruturas de poder que se manifestam e operam ainda por meio de discursos neocoloniais.
É certo que se poderia argumentar que a mostra em questão é insuficiente em termos de recorte e, nesse sentido, pouco acrescenta às reflexões significativas que se tem feito sobre o tema. Mesmo naquilo a que se propõe (o nascimento do modernismo), a mostra apresenta mais disfunções que explicações. Ainda que o catálogo traga alguns ensaios relevantes sobre os artistas , escritos por pesquisadores reconhecidos, como Ana Paula Simioni e Giancarlo Hannud, permanece a sensação incômoda de que a mostra como um todo utilizou-se de critérios que se justificam apenas por razões alheias à história da arte, o que a crítica britânica chamou “diplomáticas”. A preferência por Blaise Cendrars como ponto de partida para a reflexão das curadoras Fabienne Eggelhöfer e Roberta Saraiva Coutinho é no mínimo questionável para abordar a complexidade seja da formação do que se convencionou chamar modernismo seja da abordagem que a própria história da arte fez sobre o assunto; e eclipsa a convulsão intelectual e artística que se travou no país em torno da primazia do movimento.
Outro aspecto relevante abordado acertadamente por Cumming se refere às categorias utilizadas para examinar a produção dos artistas, que se revelam predominantemente discursivas e se mostram insuficientes para abordar a complexidade das obras expostas. E essa abordagem curatorial implica, certamente, na análise feita pela escritora de que as soluções plásticas dos pintores iniciais do modernismo reiteram-se na busca de seus correspondentes europeus e pouco acrescentam ao debate das nuances de suas contribuições para a arte brasileira.
Ora, como se sabe, as imagens do assim chamado modernismo brasileiro são propostas também por um conjunto de ideias inseridas em tradições históricas e culturais que podem ser reconstruídas e redefinidas de acordo a interesses específicos e que isso tem reflexo direto na maneira de se representar a si mesmo e ao outro. Essas escolhas, por mais que venham a se inserir ou a serem apropriadas por discursos ideológicos, como o do nacionalismo, não se dissociam da realidade vivida e experimentada pelos artistas. Nesse sentido, a interpretação dessas imagens deveria ser observada sob um duplo aspecto, tanto no que concerne à linguagem própria do meio em que o discurso é enunciado, no caso o Brasil, quanto a partir dos contextos e apropriações em que se inscreve. E isso a exposição teve muita dificuldade de evidenciar; tanto, que provocou uma resenha avassaladora de Cumming.
O grande incômodo, entretanto, não é mérito da mostra, mas sim da crítica. Ao descrever o Brasil como “uma nação convulsionada por ditaduras e golpes” e ao questionar a capacidade dos leitores de reconhecer artistas brasileiros relevantes, Cumming reafirma um discurso de inferiorização que sustenta, em última instância, a lógica de subjugação cultural. Nem seria preciso retomar as instabilidades políticas pelas quais o mundo passava durante os anos de 1930-40, porque o leitor certamente há de lembrar que os poucos países europeus no período que ainda sustentavam uma democracia pouco representativa, o faziam com base na violência institucional e com os recursos de colônias africanas e asiáticas. E é justamente em um desses países no qual o Império Britânico “exercia a sua democracia” que uma das principais teóricas decoloniais da atualidade nos fornece um pensamento contundente a respeito de opiniões grosseiras e injustificáveis como as da escritora de arte britânica.
Gayatri Chakravorty Spivak é uma teórica indiana pós-colonial e feminista conhecida por seu trabalho sobre teoria crítica e literatura pós-colonial. Suas análises se debruçam sobre as dinâmicas de poder, conhecimento e representação que permeiam as relações coloniais e pós-coloniais. Para a autora, não se trata apenas de desmantelar as estruturas políticas e econômicas do colonialismo, mas também de desafiar e desfazer as hierarquias de conhecimento e poder que são intrínsecas ao colonialismo. Isso inclui questionar não apenas as narrativas e representações dominantes produzidas pelo colonizador, mas também as formas de saber e conhecimento que foram marginalizadas ou silenciadas pelo colonialismo. Nesse sentido, adverte a autora, que a mera representação do colonizado (ou subalterno) ou a discussão sobre colônias, sem uma análise crítica das estruturas discursivas, pode contribuir para a manutenção do que ela compreende como neocolonialismo.
No caso de Cumming, as críticas à arte brasileira e à nação como um todo ignoram o contexto histórico e cultural profundo das produções artísticas, perpetuando uma visão que desqualifica a diversidade representada. Ao sugerir uma linha contínua de instabilidade política e cultural no Brasil, Cumming reproduz uma visão positivista da história que alinha o passado colonial ao presente de forma simplista e desinformada, o que Spivak identifica como um ‘lance perverso’ das práticas discursivas dominantes. Tal abordagem serve para reafirmar a posição de centralidade do colonizador, marginalizando o conhecimento e as expressões culturais de países do sul global.
Spivak também discute como o sujeito colonial frequentemente é transformado em um objeto de estudo cientificamente enquadrado, o que ocorre aqui com a arte brasileira, tratada com superficialidade e desprezo no discurso de Cummings. Essa redução de uma complexa herança cultural a estereótipos reflete o que Spivak descreve como o ‘enclausuramento disciplinar’ e solidifica preconceitos ao converter culturas não europeias em algo fixo e dado, sem espaço para reinterpretação.
Talvez por essa razão Cumming tenha elogiado apenas a arte de Rubem Valentim que, para os olhos da britânica que desconhecia o artista, deve lhe ter parecido suficientemente ‘exótica e brasileira’ ao ponto de valer a exaltação. Nas palavras da escritora “Valentim é tão melhor do que todos os outros artistas autodidatas neste show que é difícil saber como o elenco foi concebido em primeiro lugar. Ou, de fato, o que alguém deveria descobrir sobre a arte brasileira a partir de uma mistura tão estranha de pastiches fracamente adaptados do modernismo europeu, realismo socialista bruto e súbitos lampejos de originalidade.”
Reduzir Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Djanira, Volpi, Flávio de Carvalho e Geraldo de Barros a pastiches e lampejos revela mais sobre quem enuncia o discurso do que sobre seu objeto e faz parecer que o verdadeiro incômodo da britânica reside na circunstância da arte brasileira ocupar um espaço tradicionalmente reservado a uma arte considerada legítima porque europeia.
(1) Tarsila do Amaral (1886-1973), Anita Malfatti (1889-1964), Lasar Segall (1889-1957), Alfredo Volpi (1896-1988), Vicente do Rego Monteiro (1899-1970), Flávio de Carvalho (1899-1973), Candido Portinari (1903-1962), Djanira da Motta e Silva (1914-1979), Rubem Valentim (1922-1991), Geraldo de Barros (1923-1998).