Mac e a navalha que insiste em se esconder. Flávio Império, Brecht e a Ópera dos Três Vinténs

A atividade do historiador, por mais que em momentos solitária, não se restringe apenas à investigação do passado distante e desconexo, mas se desenvolve no exercício de se manter profundamente relacionada com o presente.

POR FABRICIO REINER E BIANCA DETTINO

Na verdade, eu vivo numa era sombria.
O mundo inofensivo é estúpido
E uma fronte sem rugas é sinal de insensibilidade.
O homem que ri, ri somente porque ainda
não lhe contaram as notícias terríveis.
Que época é esta, em que falar de árvores
É quase um crime porque significa silenciar
Sobre tantos horrores?
Bertold Brecht, [Aos que vão Nascer, 1939].
(no programa do espetáculo Ópera dos Três Vinténs, 1964)

A atividade do historiador, por mais que em momentos solitária, não se restringe apenas à investigação do passado distante e desconexo, mas se desenvolve no exercício de se manter profundamente relacionada com o presente. E, talvez por isso, a pesquisa nas fontes históricas demonstra-se imbuída de uma proximidade temporal que frequentemente surpreende, destacando as continuidades e os reflexos das dinâmicas históricas nos contextos contemporâneos. Essa interação entre passado e presente é crucial, não só porque permite que o historiador ilumine as raízes de questões atuais e ofereça uma compreensão mais profunda dos processos sociais, culturais e políticos que atuam no presente, como, e principalmente, porque propicia viés pelo qual esse presente pode ser compreendido e, potencialmente, transformado.

Curiosamente, enquanto pesquisava a recém organizada coleção de Flávio Império, guardada na Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros da USP (1), e debatia com Bianca Dettino, responsável pela Coleção, os pormenores da documentação tabulada, enquanto, vez ou outra, salpicava comentários a respeito das disfunções políticas brasileiras de 2024, em que malandros gananciosos distinguiam-se entre tentativas de golpe, intrigas, traições, cadeiradas e estratagemas – por vezes cômicos ou grosseiros, para se alçar ou permanecer no poder – eis que me deparo com uma fotografia inusitada. Nela, um homem enjaulado, ladeado por duas mulheres aflitas, dividia o palco com uma cadeira vazia que, por força de sua elevação em forma piramidal, conduzida por degraus, ensejava uma espécie de trono. Encerravam a cena o cartaz de um homem empunhando uma metralhadora e uma insígnia felina circundada pela frase ‘todo homem tem seu preço’.

(1) O Acervo Flávio Império foi efetivamente doado pela sua família ao Instituto de Estudos Brasileiros da USP, em 2016, após longas tratativas que se iniciaram no decênio de 1990; e apresenta um conjunto significativo de mais de 3000 itens, entre desenhos de cenografia e figurinos, maquetes, fotografias de cena, obras de arte, documentos pessoais e um vasto conjunto documental sobre sua produção artística. Esse acervo, previamente processado de maneira minuciosa pela Sociedade Flávio Império, ainda no decênio de 1990, encontra-se em reserva técnica na Coleção de Artes Visuais do IEB-USP, devidamente acondicionado e em fase de disponibilização para os pesquisadores.

Luely Figueiró, Oswaldo Loureiro e Nilda Maria. (Polly, Mac Navalha e Lucy). Fotografia de Benedito Lima de Toledo. Acervo Flávio Império. Coleção de Artes Visuais IEB USP

Logo se identificou como uma das cenas da Ópera dos Três Vinténs, a famosa sátira musical de Bertold Brecht e Kurt Weil, adaptada da ópera de John Gay, de 1728 (The Beggars Opera – Ópera dos Mendigos); a imagem, na qual Mac Navalha se encontrava preso e procurava conciliar os anseios de duas de suas mulheres, Lucy e Polly, com o único propósito de se ver livre da prisão (e da situação delicada que se criara quando as amantes finalmente se inteiravam uma da outra), suscitou um debate acalorado entre eu e a chefe da coleção que, dentre outros pormenores, vale destacar o quanto aquela peça, por mais que tivesse sido escrita em um mundo cujo limiar quase alcança os 100 anos, fazia-se, não obstante, tão presente e necessária. Mais ainda, ao identificar que a foto se referia à encenação montada por Flávio Império, há sessenta anos, quando, precisamente em 15 dezembro de 1964, a peça estreava em São Paulo, no recém-inaugurado teatro Ruth Escobar.

Fotografia de cenário, no cartaz: “Apresentamos Hoje à noite uma ÓPERA PARA MENDIGOS concebida com tal luxo como só os mendigos sabem imaginar mas tão barata que eles pudessem pagá-la, daí seu nome A ÓPERA DE TRÊS VINTÉNS.” Fotografia de Benedito Lima de Toledo. Acervo Flávio Império. Coleção de Artes Visuais IEB USP

Trama que não só ostentava a virulência de Brecht frente a hipocrisia e corrupção da sociedade burguesa, como eternizava a figura de Mackie Messer, mais conhecida pela alcunha de ‘Mack the Knife’ ou Mac Navalha. Distinguido principalmente pela sua moritat (2) inicial, que se tornaria canção popular das mais regravadas, cantada por muitos artistas depois da célebre interpretação de Louis Armstrong, em 1955, com letras traduzidas por Marc Blitzstein. De Ella Fitzgerald à Frank Sinatra, passando ainda por uma versão “carioquizada” feita por Chico Buarque para a Ópera do Malandro, a canção correu o mundo e se tornou atemporal. Tanto, que foi incluída no Registro Nacional de Gravações pela Biblioteca do Congresso americano, em 2016.

(2) Uma Moritat é uma versão medieval da balada de assassinato, executada por menestréis itinerantes. Na Ópera dos Três Vinténs, o cantor da Moritat com seu realejo introduz e encerra o drama com a história de Mackie Messer, ou Mack the Knife, um personagem baseado em Macheath da Ópera dos Mendigos de John Gay (que, por sua vez, foi escrito com base no ladrão histórico Jack Sheppard). A versão de Brecht e Weill do personagem era muito mais cruel e sinistra que a versão de John Gay e, apesar de sua aparência bonachona, vangloriava-se de crimes que se estendiam de estupro à assassinato.

“Tubarão tem dentes fortes
Que não tenta esconder,
E Mackie tem uma navalha
Mas a navalha não se vê.
[…]
Jenny Towler foi achada
Esfaqueada lá no cais.
Quem furou seu peito branco?
Foi Navalha? É demais!
[…]
E o incêndio lá no Soho:
Seis crianças e um ancião
Entre o povo está o Navalha
A quem nada indagarão”. (3)

(3) BRECHT, B. 1988, p.13.

Brecht e o então desconhecido Weill, ao se basearem nos gêneros de opereta e comédia musical, contaram a história de Mac e de seu amor por Polly, filha do antagonista J.J. Peachum; mais conhecido como o Rei dos Mendigos, por comandar uma gangue de mendigos desleais que o enriqueciam com dinheiro de esmolas. Peachum, que encarnava dissimulação e vigarice, tentava manipular as autoridades para capturar Mackie. Durante esse processo, a ópera explorava temas como corrupção, abuso de poder e injustiças sociais, questionando os valores burgueses e liberais. Com músicas icônicas e uma narrativa crítica, a obra provocava o público a refletir sobre a moralidade em si e a sociedade em que se inseria.

Roberto Azevedo, Túlio de Lemos e Leny Eversong. (Filch, Sr. e Sra. Peachum)
Nos cartazes: “Vítima da prepotência militar”, “Quem dá aos pobres empresta a Deus”, “Não cerreis vossos olhos à miséria”, “Doai aos pobres sem esperar recompensa”. Fotografia de Benedito Lima de Toledo. Acervo Flávio Império. Coleção de Artes Visuais IEB USP

A opereta, grosso modo, assenta-se na teoria teatral desenvolvida por Brecht, em que prevalece a dialética entre obra e público; com efeito, ainda que apresente uma percepção estética de distanciamento, promovida sobretudo pela escolha do gênero teatral (épico), provoca uma reflexão marcada pelas determinantes sociais das relações interpessoais. O autor, com isso, traz engajamento social da plateia ao desconstruir as características clássicas determinadas pelo teatro aristotélico, transformando o teatro em práticas teatrais reflexivas, utilizando ideias dramatúrgicas e propostas cênicas que objetivam isolar e distanciar os elementos da encenação e do drama tradicionais, familiares ao público, retirando-os do movimento absoluto que caracteriza o drama e convertendo-os em objetos épico-cênicos.

Não por acaso a teoria de teatro brechtiana tenha rapidamente se popularizado e exercido influência determinante também no Brasil, principalmente a partir do decênio de 1950. No país que ainda se empenhava em superar mazelas provocadas tanto pela brutal concentração de poder e de riqueza nas mãos de poucos oligarcas, quanto pela escravização e exploração indiscriminadas da mão de obra durante séculos, o que se verificava de maneira contundente na sociedade brasileira era (e ainda é) uma desigualdade social latente. Ainda que a Revolução de 1930 e o Estado Novo tenham sido marcados pela tentativa de integração das massas urbanas à sociedade oligárquica e pela criação de uma ordem institucional que permitisse a inclusão do pobre na arena política, essa inclusão só foi alcançada por meio de políticas nacional-populistas que acomodavam as classes populares de forma subordinada ao mesmo tempo em que reduziam o poder das oligarquias tradicionais em favor de um estado proto-liberal, que viria a se consolidar somente a partir do golpe militar de 1964.
E foi nesse ambiente marcado por idiossincrasias e contradições sociais que o teatro brasileiro floresceu. Como nos descreve Mariângela Alves de Lima, o teatro brasileiro:

pulsava em perfeita sincronia com a poética do teatro internacional. Desde o final dos anos 1930, com o grupo Os Comediantes e, nos anos 1940, com o Teatro Brasileiro de Comédia, cumpriam-se as etapas de atualização do nosso teatro com os princípios de unidade artística da obra cênica. Texto, interpretação e visualidade são postos em consonância por uma intensa atividade remodeladora que age simultaneamente sobre os conceitos e as técnicas (4).

(4) LIMA, Mariângela A. In: Flávio Império, 1999. (Artistas Brasileiros, 13). p. 17.

E, por essa razão, esse teatro ambicionava uma atuação crítica tanto na formação educativa quanto na cultura brasileira de maneira geral. Somado a esse modelo civilizatório tabulado no Brasil a partir de propostas que tiveram êxito com a consolidação de modelos modernistas inaugurados nos anos de 1920, continua a autora, associava-se a ideologia socialista “temperada sempre pelo anti-imperialismo e, algumas vezes, pelo nacionalismo” (5). E é justamente nesse proscênio de ideias e ambições intelectuais e artísticas que procuravam não somente explicar o Brasil, mas antes, de intervir no país de maneira positiva, adequando proposições teóricas e formais a percepções mais simples e diretas da realidade existencial brasileira, que Flávio Império estreava profissionalmente como cenógrafo e figurinista.

(5) Idem. p. 21.

Oswaldo Loureiro (Mac Navalha), Pedro Bandeira (Jacó Mão de Gancho) e atrizes não identificadas, possivelmente Leilah Assumpção, Maria Alice Vergueiro, Flora Basaglia, Glória Moreira, Marilene Silva (prostitutas). Nos cartazes: “Vítima da prepotência militar”, “Quem dá aos pobres empresta a Deus”, “Não cerreis vossos olhos à miséria”, “Doai aos pobres sem esperar recompensa”. Fotografia de Benedito Lima de Toledo. Acervo Flávio Império. Coleção de Artes Visuais IEB USP

O multiartista, reconhecido por seus trabalhos em Morte e Vida Severina (1960), Os Fuzis da Mãe Carrar (1962), Roda Viva (1968), Doces Bárbaros (1976), dentre muitos outros, e por contundente atuação no campo das artes visuais e arquitetura, assim como pela sua indiscutível atividade como professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, empenhava-se na ideia de que sua arte deveria não só exercer um impacto estético e espiritual no público, mas sobretudo, que promovesse sua redenção social. Não por acaso, as proposições do teatro brechtiano ressoaram as concepções do artista brasileiro que, mesmo antes de saber quem era o autor alemão, optava por um tratamento cenográfico não-ilusionista, antes, simbólico, a fim de que os objetos em cena conservassem a forma e a memória de seu uso habitual. (6)

(6) Idem.

Ora, se as imagens em cena deveriam apresentar representações do vivido, sentido, imaginado e projetado por indivíduos de um grupo ou sociedade, elas deveriam ser propostas também por um conjunto de ideias inseridas em tradições históricas e culturais que poderiam ser reconstruídas e redefinidas de acordo a interesses específicos, consequentemente, com reflexo direto na maneira de se representar a si mesmo e ao outro. Estas escolhas, por mais que venham a se inserir ou a serem apropriadas por discursos ideológicos, não se dissociariam da realidade vivida. Nesse sentido, a interpretação de imagens em cena deveria ser observada sob um duplo aspecto, tanto no que concerne à linguagem própria do meio em que o discurso foi enunciado quanto a partir dos contextos e apropriações em que se inscrevia. Desse modo, poder-se-ia perceber como o teatro incorporava em seu processo uma série de elementos, como históricos, mitológicos, psicológicos, entre outros.

Macnavalha condenado à morte fotocópia em papel vegetal de desenho de Flávio Império. Acervo Flávio Império Coleção de Artes Visuais IEB USP

Oswaldo Loureiro (Mac Navalha) e Zeluiz Pinho (Brown ‘O Tigre’). Fotografia de Benedito Lima de Toledo Acervo Flávio Império Coleção de Artes Visuais IEB USP

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

E é justamente essa preocupação com a correspondência entre processos históricos que relacionem passado e presente que orientavam Flavio Império na concepção cenográfica da Ópera dos Três Vinténs. Do que se observa, as soluções plásticas adotadas para a opereta, ainda nas palavras da pesquisadora Mariângela Alves de Lima, assentam-se na “irrealidade dos movimentos suspensos, graficamente bem definidos, sem volume e marcados por inscrições que anulam qualquer esforço de ambientação” (7). Partindo da edificação de palco italiano, Flávio Império concebeu uma estrutura fixa para o referido espetáculo, composta por um cortinado e de módulos para a estrutura do palco. A cada cena, eram acrescentados um ou mais elementos por meio do sistema de cenários suspensos, moldando e alterando os ambientes em que se apresentava a trama (8). Os figurinos, detalhadamente desenhados, abrangiam mais de 30 personagens e exibiam caracteres cômicos ou grotescos; próprios à exibição de um teatro que se preocupava mais em promover a apropriação do público do universo cênico que ali se apresentava, e que mantinha estreitas relações com a realidade material objetiva, do que alimentá-lo de ilusões banais e alienantes.

Projeto de cenário – Rouparia Peachum e Cia – vitrine de manequins de mendigos fotocópia em papel vegetal de desenho de Flávio Império. Acervo Flávio Império Coleção de Artes Visuais IEB USP

Projeto de figurino – Sr. e Sra. Peachum fotocópia em papel vegetal de desenho de Flávio Império. Acervo Flávio Império Coleção de Artes Visuais IEB USP

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(7) Idem. p. 26.

(8) Nas palavras de Flávio Império: “o teatro comportado entre quatro paredes procura a empatia pela extrema semelhança, pelo simulacro da ficção dramática, pela identificação com as situações vividas pelos personagens na tecitura do drama. Esse anseio de reconstruir no espaço cênico o espaço ficcional do drama escrito encontrou na caixa mágica do chamado “teatro italiano” seus elementos de linguagem mais adequados e lá se instalou durante mais de quatro séculos, com tanto conforto para as exigências do espetáculo como para as exigências da plateia que acabou por fundir a própria noção de teatro com esse tipo de edificação “à italiana”, confundindo o fenômeno teatral com essa forma específica de manifestação. (Flávio Império em Cena, 1997. Fac-símile)

Na peça, os sentimentos humanos são expostos de maneira crua e intransigente, em que amizades cedem às conveniências e interesses escusos, e até o amor sucumbe diante das comodidades pessoais. O egoísmo, a vaidade, a mentira e a sensualidade barata são “qualidades” quase “míticas”, que Mac Navalha oferece aos parceiros enquanto precisam dele, e às suas inúmeras mulheres. Todos se reúnem ao seu redor, não por ele ser um herói no sentido estrito da palavra, mas por encarnar símbolo de poder: ele é o líder porque é o mais forte, inescrupuloso, habilidoso, corrupto e interesseiro. Mesmo assim, é traído por suas leais amantes do bordel (e até mesmo da alta sociedade local que o respaldava), e condenado à forca. Durante seu tormento e provação, Mac Navalha, antes onipotente, se vê tão abandonado quanto qualquer outro ladrão desimportante e corriqueiro.

Com isso Brecht, elevado pela apresentação cênica primorosa de Flávio Império, que incorporava, como síntese, não só as proposições teóricas do autor alemão como ainda a precariedade técnica do teatro brasileiro daquele período, transformando dificuldade em linguagem artística, expõe que os criminosos, ao contrário da visão romântica, não são menos corruptos que qualquer aristocrata, policial ou, naquele primeiro ano de restrição democrática, militar. Os ladrões, qualquer que seja sua origem social, não são apenas vítimas inocentes do terror social, mas malfeitores reais, prontos para matar se necessário. Os mendigos exploram impiedosamente a compaixão que ainda resta entre as pessoas, enquanto as prostitutas vendem tanto o corpo quanto a consciência, traindo o próprio amante por algumas moedas.

Atrizes não identificadas, possivelmente Leilah Assumpção, Maria Alice Vergueiro, Flora Basaglia, Glória Moreira, Marilene Silva (prostitutas). Fotografia de Benedito Lima de Toledo Acervo Flávio Império Coleção de Artes Visuais IEB USP

No fundo, Brecht utiliza Mac Navalha para mostrar que as linhas entre moralidade e imoralidade são frequentemente borradas, especialmente em uma sociedade capitalista. Uma cena que evidencia essa ambiguidade, e retoma o início de toda a discussão, representada pela foto fortuitamente pinçada dentre tantas outras, é a da prisão de Mac Navalha, quando Polly Peachum, sua esposa, e Lucy Brown, filha do chefe de polícia e sua amante, se encontram pelas grades. Ambas acreditam ter o amor exclusivo de Mac, mas logo percebem que foram enganadas. Esta cena, rica em tensão emocional, revela a complexidade moral de Mac, que manipula ambas as mulheres e outras personagens para se livrar da condenação, explorando suas emoções e alianças. Essa sua capacidade manipulativa destaca tanto sua astúcia quanto falta de escrúpulos.

No entanto, a cena também ilustra sua vulnerabilidade e desejo de sobrevivência, criando um contraste com sua imagem de criminoso frio e calculista. A ambiguidade moral se revela na forma como ele navega entre a afeição genuína que pode ter pelas mulheres e sua disposição em traí-las para salvar a própria vida. Essa dualidade entre o manipulador implacável e o homem que luta para sobreviver em um sistema corrupto reflete a complexidade das balizas morais do texto, e obriga o público a reconsiderar seus próprios julgamentos sobre o que é certo ou errado. O próprio Mac-Navalha é compreendido antes como uma personalidade mais simplória que ameaçadora; por baixo da displicência afetada do cafajeste afortunado jamais adivinhamos o vilão inescrupuloso capaz de dilacerar quem quer que se coloque em seu caminho.

Oswaldo Loureiro (Mac Navalha) e policial. Fotografia de Benedito Lima de Toledo Acervo Flávio Império Coleção de Artes Visuais IEB USP

Outro exemplo que destaca a ambiguidade moral de Mac Navalha se revela na sua relação com seu velho amigo, o chefe de polícia, Tiger Brown. Apesar de Brown ser a autoridade que deveria prendê-lo, ele ajuda Mac a escapar da justiça várias vezes. Durante uma reunião, Mac e Brown relembram seus velhos tempos juntos no exército, e Mac usa essa amizade com fins a manipular o parceiro a seu favor. Mac convence Brown a não só deixá-lo escapar, mas também a fornecer informações e recursos que o ajudam a manter suas operações criminosas. Esse exemplo de instrumentalizar relacionamentos pessoais para obter vantagens, mesmo quando isso signifique corromper aqueles com quem se diz importar, não só destaca a vulnerabilidade das instituições oficiais frente a manipulação e aparelhamento, como, principalmente, suscita uma reflexão importante frente aos acontecimentos que se apresentavam tanto à Flavio Império, em 1964, quanto hoje para nós, sessenta anos depois, em 2024.

A esta altura o leitor provavelmente já tenha percebido as analogias e feito associações semelhantes que Bianca e eu fizemos naquela conversa. “Pois a maldade do mundo é grande e é preciso gastar as solas para que ninguém nos roube os sapatos”, diria Peachum ao dar início ao seu plano de encerrar a vida de Mac. A figura de um malfeitor que, apesar de seus ilícitos, consegue ascender socialmente e obter poder, muitas vezes através de alianças e traições recompensadas por um sistema que pune sobretudo àquele que pouco tem a oferecer e recompensa às alianças interessadas e amorais, transcende o teatro de Brecht; e a frase “num mundo como este, o homem, para sobreviver, tem de suprimir a sua humanidade e explorar o seu semelhante”, poderia muito bem ter saído da boca de Mac, Peachum, Pablo, Humberto, Augusto, Walter, Mauro ou Jair.

Fotografia do elenco impressa no programa da peça. Acervo Flávio Império Coleção de Artes Visuais IEB USP

O que nos resta enquanto consequência prática e que ecoa as preocupações do teatro de Flávio Império naquela angustiante situação da recente restrição das liberdades democráticas, e que, hoje se sabe, vieram-nos também assombrar mais contundentes do que nunca, é entender que, como queria Brecht, podemos e devemos nos apropriar desse mundo de forma a compreender que essas mazelas são históricas e, por essa razão, ocasionais e passageiras, por mais que pareçam cíclicas ou permanentes. A fim de evitarmos, no presente, a mesma reviravolta irônica que livrava Mac da forca e anunciava, por uma ordem direta da Rainha, sua elevação à categoria de “nobre hereditário”, assegurando-lhe moradia e sustento pelo resto de sua vida.

Referências Bibliográficas
BRECHT, Bertold. Teatro Completo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
IMPÉRIO, Flávio. Flávio Império em cena. Curadoria Gláucia Amaral, Renina Katz. São Paulo: SESC SP, 1997.
IMPÉRIO, Flávio. Flávio Império em cena: o guia. Curadoria Gláucia Amaral. São Paulo: SESC SP, 1997. [64] p., il.
KATZ, Renina e HAMBURGER, Amélia Império (orgs.). Flávio Império. São Paulo: Edusp, 1999. (Artistas Brasileiros, 13).
MOREIRA LEITE, Rui. “Textos de Flávio Império” (seleção para publicação da Editora da Universidade de São Paulo). [dec. 1990].
PRADO, Décio de Almeida. “A Ópera dos Três Vinténs”. O Estado de S. Paulo, 23 de dez. 1964.

Fabrício Reiner é mestre em Filosofia com especialização em Culturas e Identidades Brasileiras (2016) e Bacharel em História (2005), ambos pela Universidade de São Paulo, aperfeiçoou-se em museologia e história da arte em Siena (2008). Desenvolveu e participou de diversos projetos acadêmicos e curatoriais junto a Biblioteca Mário de Andrade, Biblioteca Guita e José Mindlin e o Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Atua como pesquisador e curador independente.

Bianca Dettino é graduada em Arquitetura e Urbanismo (2000) e mestrado em Museu e Patrimônio (2012), ambos pela FAU-USP. Especialização em Museologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (2004). Supervisora técnica da Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros da USP, com ênfase em Museologia, com cerca de 20 anos de atuação em gerenciamento e documentação de acervo, bem como em concepção, produção e montagem de exposições do Instituto.

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