POR TEREZA DE ARRUDA
Neste segundo semestre de 2025, São Paulo torna-se palco de significativos encontros entre arte e arquitetura com participantes nacionais e estrangeiros. O arquiteto suíço Philipp von Matt e a artista nipo-suíça Leiko Ikemura participam simultaneamente de duas das mais importantes plataformas internacionais realizadas no Brasil: a 13ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, sob o título „Extremus“, e a 36ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo.
Embora ambos já tenham trajetórias amplamente reconhecidas na Europa e na Ásia, esta é a primeira vez que o casal apresenta seus trabalhos em contextos expositivos de tal relevância no Brasil — um momento de confluência simbólica entre suas linguagens, marcadas pela sensibilidade estética e pela reflexão existencial que atravessa tanto o espaço arquitetônico quanto o poético.
Philipp von Matt é uma figura singular no panorama da arquitetura contemporânea europeia. Autodidata, foi admitido na prestigiosa associação alemã BDA (Bund Deutscher Architektinnen und Architekten), um feito raro para quem não percorreu o caminho acadêmico convencional. Nascido no cantão de Nidwalden, na Suíça, vive há 25 anos em Berlim, onde fundou seu escritório em 1994, após colaborar com mestres como Jean Nouvel e Philip Johnson. Seu trabalho combina precisão construtiva e intuição artística, especialmente evidente nos espaços que cria para artistas contemporâneos — entre eles, o seu próprio Atelierhaus, concebido para ele e Leiko Ikemura.
Localizado no coração do bairro Kreuzberg, na Adalbertstraße, o Atelierhaus insere-se num contexto urbano emblemático da transformação berlinense. Kreuzberg, historicamente marcado pela diversidade cultural, pela vida comunitária e pela resistência política, tem sido nas últimas décadas palco de intensos processos de gentrificação. Nesse cenário, a casa projetada por von Matt surge não como um gesto de isolamento ou distinção estética, mas como uma arquitetura que dialoga com o entorno, preservando a organicidade do bairro e sua dimensão humana.
Em um bairro onde antigas fábricas, moradias sociais e novos empreendimentos disputam o mesmo chão, o Atelierhaus von Matt–Ikemura reafirma a possibilidade de habitar o centro urbano de forma ética e poética, em harmonia com o contexto social. É um espaço que reflete a ideia de permanência — não no sentido da estabilidade física, mas como uma atitude de cuidado, partilha e pertencimento.
Casa-ateliê dos artistas Leiko Ikemura e Philipp von Matt, Arquiteto Philipp von Matt BDA, Berlim, Alemanha.
O Atelierhaus é mais do que uma residência: é um manifesto sobre o diálogo entre arte e arquitetura. Externamente, o edifício se comporta como um camaleão, discreto e em harmonia com o entorno; internamente, revela-se um espaço de contemplação e transcendência. As referências à história da arte — Tintoretto, Giacometti, Peter Zumthor — não surgem como citações diretas, mas como ressonâncias de atmosfera, proporção e luz. Von Matt manipula as dimensões espaciais de forma quase pictórica: paredes levemente inclinadas ampliam a percepção de altura e profundidade, criando uma sensação de expansão contínua.
O espaço é ao mesmo tempo austero e generoso. “A riqueza da nossa casa está no que deixamos de lado”, afirma Leiko Ikemura, ecoando o célebre princípio de Mies van der Rohe, “less is more”. A estrutura de cinco andares abre-se à luz e às transparências, em um jogo sutil de sombras e vazios. É uma casa que vive dos intervalos, dos respiros, dos pontos de passagem — uma morada para um casal cosmopolita que está frequentemente em movimento, mas que encontra ali a sua noção de pertencimento. Além de moradia o prédio abriga os ateliês de Leiko Ikemura e o escritório de Philipp von Matt. Vista de fora, a casa parece ter sempre existido; vista de dentro, é um organismo vivo, em permanente transformação.
Na Bienal de Arquitetura intitulada“Extremus”, na qual o Atelierhaus de von Matt é apresentado como projeto, simboliza não somente uma reflexão sobre a condição humana e o papel do arquiteto diante dos limites — físicos, ecológicos e espirituais — do nosso tempo. Sua proposta ultrapassa a dimensão técnica e propõe uma arquitetura como gesto existencial, na qual matéria e emoção se entrelaçam.
Simultaneamente, Leiko Ikemura participa da 36ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo com um conjunto de obras que expande sua pesquisa sobre o feminino e o espiritual em diálogo com a natureza. Nascida em Tsu, no Japão, e radicada na Europa desde os anos 1980, Ikemura desenvolveu uma carreira marcada pela transposição de fronteiras culturais e estéticas. Vive e trabalha entre Berlim e Colônia, e suas obras integram coleções como o Museum der Moderne Salzburg, o Kunstmuseum Basel e o National Museum of Modern Art, Tokyo.

Vista da instalação de Leiko Ikemura durante a 36ª Bienal de São Paulo ©️ Levi Fanan. Fundação Bienal.
Na Bienal de São Paulo, a artista apresenta escultura, vídeo, além de pinturas e aquarelas recentes e produzidas no Atelierhaus de Berlimque exploram o motivo recorrente das figuras híbridas — seres entre mulher, criança e animal — que habitam paisagens suspensas entre o real e o onírico. Suas obras questionam a noção de identidade e pertencimento, evocando uma espiritualidade que emerge da vulnerabilidade. A delicadeza do gesto manual e a presença do vazio como elemento ativo criam um campo sensorial em que a matéria se torna emoção.
A presença simultânea de Leiko Ikemura e Philipp von Matt nas bienais paulistanas reforça o elo entre suas práticas — duas formas complementares de questionar o espaço e o espírito. Em São Paulo, cidade de contrastes e potência criativa, suas obras se espelham e dialogam, unindo a introspecção do gesto artístico à clareza construtiva da arquitetura.
Ao visualizarmos suas perspectivas sob o mesmo horizonte, nas bienais de arte e de arquitetura temos mais do que produções individuais: a afirmação de uma visão compartilhada sobre o mundo contemporâneo — onde o lar se torna pensamento, criatividade e troca a abrigar identidades e potencialidades.
Tereza de Arruda é curadora e colabora internacionalmente com diversas instituições e museus na realização de mostras coletivas ou monográficas. É mestre em História da Arte, formada pela universidade Livre de Berlim.
Vive desde 1989 entre São Paulo e Berlim.



