POR ARTUR DE VARGAS GIORGI
A relação entre arte e arquivo é, provavelmente, uma das chaves de leitura de maior produtividade na arte contemporânea. Frequentemente somos lembrados da etimologia do termo (arquivo, arkhê), que é ligado à ideia de poder, assim como à ideia de começo. Em torno do lugar específico de um arquivo se reúnem, então, a autoridade e a origem: como em sítio arqueológico, diríamos, um arquivo depende da lógica de quem regula, conserva e interpreta os elementos reunidos na leitura, elementos que não devem ser aleatórios nem indiferentes, sob pena de comprometerem a memória e o sentido que devem emergir das camadas do tempo.
Entretanto, como a total apreensão de qualquer situação originária, a completude do arquivo é da ordem do impossível. Comprometido com a instituição e a ordenação, uma sorte de arruinamento é dele indissociável. Afinal, um arquivo existe apenas se tensionado pelo que escapa à sua capacidade de conservação e atribuição de sentido, do mesmo modo como um sítio é atravessado pelo que perturba o seu arranjo e a sua permanência. Nesse confronto, o que resta assim, ausente, esquecido ou excluído, não deixa de habitar o arquivo, de fato comprometendo-o, isto é, tornando-o avesso ao seu próprio princípio. Em outras palavras: em um arquivo trabalha a anarquia.
Poucos se dedicaram tão ostensivamente a essa ambivalência do arquivo como Christian Boltanski. De modo recorrente, em seus trabalhos o arquivo se apresenta como construção e ruína. Dramáticas, cênicas, muitas de suas montagens e instalações acentuam cada vida que, submetida aos desígnios da biopolítica, parece aparecer e resistir justamente no limiar do desaparecimento; ou ainda, cada vida que, relacionada com os sítios em questão, catalogada e arquivada, burla, não obstante, as atribuições de sentido e de identidade, situando-se além ou aquém do particular ou do universal, do pessoal ou do histórico, da ficção ou da realidade.
Consideremos, por exemplo, suas instalações simultâneas realizadas em distintos espaços de Buenos Aires no final de 2012 (Archives du coeur, Migrantes e Flying books). Ou ainda, as instalações apresentadas em Chance, na Casa França-Brasil, no mesmo ano, e em 19.924.458 +/-, no SESC Pompéia, em 2014.
Em Archives du coeur, instalado no parque Tecnópolis, em Buenos Aires, como parte de um projeto iniciado anos antes e sediado na ilha de Teshima, no Japão, Boltanski propôs coletar os sons dos batimentos de corações: um arquivo, justamente, desse movimento de contração e dilatação que oferece à escuta não a positividade de cada presença, mas uma série de intermitências em que é o próprio vazio – o oco do coração – que ecoa como primeiro e também último vestígio de cada existência: um vazio que habita o arquivo, portanto, como habita cada corpo.
A leitura das instalações se mantém em tensão com o aspecto fantasmático que retratos, materiais e objetos diversos, textos, sons e encenações assumem nos trabalhos. São instalações que se dedicam à remontagem de um arquivo específico, ou seja, à construção retrospectiva e situada da história. Mas vale frisar: uma memória, uma história, portanto, são efeitos dessa construção não-total e, portanto, plural; efeitos de uma montagem de elementos heterogêneos, provenientes de distintas temporalidades e diversas superfícies de exposição, e que apenas provisoriamente conformam uma figura, ou melhor, um semblante que adquire uma estabilidade frágil diante da ausência resistente que ele re-vela.
A efemeridade de cada construção lida com o acaso – a chance – que, entre sorte e azar, vida e morte, comporta sempre uma demanda e uma oportunidade. É como cada vir-a-ser: cada rosto de bebê que reaparece, vindo novamente à luz, mas por um instante apenas, com as engrenagens da instalação Chance, apresentada na Casa França Brasil; ou como cada um dos incontáveis nomes – são 19.924.458 +/-, diz o título do trabalho – que constam nos catálogos telefônicos da cidade de São Paulo e que, de certa maneira, constituem sua matéria intermitente e plástica, pontuada, na instalação, pelo pulsar de luzes que acompanham a frequência das mortes e dos nascimentos na metrópole e pela reprodução sonora de depoimentos de imigrantes que ali vivem; ou cada um dos livros suspensos em Flying books, montada no espaço (então sem livros) que já foi a sala de leitura central da antiga Biblioteca Nacional, em Buenos Aires, dirigida por Borges; ou, finalmente, cada elemento da impactante intervenção produzida no antigo Hotel de Inmigrantes (hoje Museo de la Inmigración), na mesma cidade. Neste caso, em específico, vale destacar a proposta da instalação:
Tomando como ponto de partida os arquivos históricos que registram cada um dos migrantes que chegaram ao nosso país, abrigados no edifício, a instalação contará com uma série de aproximadamente 200 vozes (crianças, homens e mulheres, jovens, adultos, idosos) que, simultânea e sucessivamente, de diferentes fontes, dizem cada uma na língua de origem do migrante: nome e sobrenome, idade, ocupação, data de chegada, todos os dados do arquivo. Este sussurro migratório de tempos e origens diversas reunidas neste espaço emblemático será acompanhado por uma atmosfera nebulosa e pouco iluminada que introduzirá o visitante a uma nova experiência que o conectará com a memória e o passado da nossa sociedade e, ao mesmo tempo, com o da própria história. Essa experiência, instalada nos espaços de trânsito do terceiro andar do Hotel de Imigrantes, dará origem a outras duas instalações luminosas que, por meio de jogos de sombras, contribuirão para tornar presentes aqueles que por ali passaram e também recolocarão a questão das migrações na contemporaneidade.
Na Argentina, desde quando consolidadas as bases para a modernização do país, a “tarefa civilizadora” (atração de capitais, de mão-de-obra e povoação do território, mediante a apropriação de terras e a aniquilação da população de indígenas) esteve associada aos imigrantes europeus, atraídos pelos auspícios da crescente organização burocrática do Estado. Foi uma política de abertura e recepção que se manteve, em geral, sem grandes interrupções até 1930 (ainda que eventos como a Semana Trágica, em janeiro 1919, tenham reforçado a barbárie do Estado civilizador, que no caso vitimou operários de tendência anarquista e imigrantes judeus e eslavos). Construído segundo normas higienistas, após o uso de diversos imóveis provisórios e inadequados, o antigo Hotel de Inmigrantes, inaugurado em 1911 e ativo até 1953, é assim um equipamento emblemático, com o qual podemos ler, contemporaneamente, alguns dos momentos inaugurais da biopolítica moderna.
Na instalação de Boltanski, que fez uso do prédio, de seu arquivo, suas salas e de uma série de materiais heterogêneos (camas, lençóis, roupas, luzes e sombras, fumaça etc.), essa leitura se mede com o apagamento e reverbera com o som das vozes estrangeiras que, performadas, repetidas, diferidas, sobrepostas, então atravessavam não somente o edifício, mas igualmente os visitantes, que, por um momento, também ali foram asilados. Enfim, o efeito sonoro ficcionaliza, reencena um momento crucial para as histórias dos sujeitos em trânsito. Álvaro Fernández Bravo assim sintetizou a situação:
É o momento em que o imigrante se confronta com a autoridade estatal e declara sua identidade. Diante da lei, depois de uma viagem de barco, essas pessoas estavam dizendo quem eram e quem estavam (talvez) deixando de ser. Essa identidade, no exato momento em que é declarada, talvez comece a desaparecer. O sujeito chegou ao seu destino e suas características pessoais anteriores começam, então, a ser substituídas pelas características de seu novo local. O idioma, a profissão, a idade (a passagem do tempo) e até mesmo o nome serão alterados e adquirirão novas características.
Na instalação, “essas línguas silenciosas, subtraídas (até mesmo apagadas) são ‘atuadas’ e atualizadas para adquirir eco e recuperar uma dimensão sonora que haviam perdido, silenciadas no repositório documental”. Desse modo, o artista reivindica e faz falar o arquivo: abrindo-o para a contingência das releituras (inclusive no sentido das distintas vozes, dos vários sotaques, dicções, respirações) e das remontagens que, citando e diferindo, desestabilizam a evidência da história positiva e oficial.
Em Boltanski, o esquecimento não deixa de ser propositivo, portanto; também dele depende uma incessante construção da memória. Seus arquivos constroem uma historicidade, mas essa historicidade é confrontada com o apagamento, sempre reiterado: a vida, ou cada sujeito, exaustivamente rotulado, não cessa de se esquivar dos dispositivos que o apresentam como tal. São arquivos que, desse modo, conferem uma e outra vida ao sujeito que, re-velado pelo gesto arqueológico, vem à presença não como dado da história progressiva, contínua, total, mas sim como uma sobreposição de camadas de escrituras, tecidas com descontinuidades e ausências.
Artur de Vargas Giorgi é Professor de Teoria Literária
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq