POR ARTUR DE VARGAS GIORGI
Quem circula por cidades que confrontam, hoje, os limites do seu próprio crescimento depara-se com uma espécie de constante visual, formada por prédios que se erguem continuamente, em áreas já ocupadas, às vezes imprensados uns contra os outros, em diferentes estágios de construção. Em certos casos, ainda sem qualquer altura, apenas se insinuam nos cercados feitos com tapumes ou chapas metálicas, mas já acompanhados, é claro, das placas que anunciam a construtora, a incorporadora e as qualidades do novo empreendimento. Em outros, a estrutura é como um improvável desenho geométrico que se eleva; um esqueleto modulado que investe contra o céu e o entorno, não raro velado por tecidos que contrastam, em sua leveza, com a fixidez das vigas e dos planos justapostos. E há finalmente aqueles casos em que, já prontos ou em fase de acabamento, os prédios ostentam, sem vida, os repetidos anúncios nas janelas, oferecendo-se para a venda ou o aluguel.
O fim de todos esses prédios parece ser, no entanto, praticamente o mesmo: trata-se de espaços compactos, em tudo padronizados e racionalizados, mas que são alardeados como se feitos sob medida, como a realização máxima da individualidade e o triunfo do particular; lofts, studios, mínimos apartamentos, qualificados como “integrados”, “funcionais” etc., quase sempre suplementados por diminutas áreas comuns que são, ao mesmo tempo, segmentos de mercado – plays, pets, fitness, gourmet etc. –, e que afinal são destinados a um público cada vez mais restrito, composto sobretudo por investidores, de acordo com um cenário em que as desigualdades sociais se mostram abismais.
Aqui a obviedade deve ser dita: tais construções proliferam em áreas urbanas onde o espaço físico – em uma palavra: a terra – torna-se cada vez mais escasso. São um dos produtos finais do conhecido fenômeno da gentrificação, já disseminado em escala global. Em outras palavras, resultam da especulação imobiliária e do assédio das incorporadoras ligadas com fundos de investimento, que fazem com que antigas casas residenciais e pequenos comércios, em bairros outrora mais familiares, desapareçam como que da noite para o dia, sendo os moradores tradicionais expulsos desses locais onde eles construíram, por gerações, suas histórias de vida, suas memórias afetivas e relações comunitárias. Bairros tão distintos como Santana, Vila Mariana e Pinheiros, em São Paulo, e Carvoeira, Pantanal e Córrego Grande, na região insular de Florianópolis, vivem assim situações críticas da mesma natureza, geradas pelas condições atuais do capitalismo.
Isso porque as “revitalizações”, as “melhorias” e a “qualidade de vida” trazidas pelos novos empreendimentos são, em geral, a moeda miúda, por assim dizer, dessa especulação que só encontra sua razão de ser no lucro hiperbólico sobre a terra apropriada e alienada. Um lucro que é indissociável da mobilidade financeira do imóvel, isto é, da liquidez por ele gerada nas condições já desterritorializadas do mercado global e seus circuitos transnacionais, o que obviamente condiciona o absurdo encarecimento do custo de vida nos espaços onde esses projetos se impõem, assim como o insustentável adensamento urbano, causador de inúmeros problemas que extrapolam qualquer benefício trazido pela vida numa grande cidade, com inevitável sobrecarga da infraestrutura e dos serviços públicos. Nessas condições, os novos imóveis, com valores exorbitantes, em geral acabam servindo a locações breves, de alta rotatividade (via sites, apps etc.), de maneira que a aquisição desses apartamentos, ou mesmo o aluguel de longa duração, torna-se simplesmente inviável para uma enorme parcela da população.
Além disso, como já foi dito tantas vezes, a lógica que orienta a maioria desses projetos e a mentalidade do público a que eles se destinam é a do condomínio: lógica do fechamento do particular para a vida pública vivida nas ruas e nos bairros, isto é, da recusa da participação na dinâmica mais abrangente da cidade, com suas disputas e suas partilhas que dependem de temporalidades mais dilatadas. Evidentemente, essa lógica segregadora, hoje ainda mais acentuada, não só amplia as discrepâncias entre classes sociais, como também torna mais conflitiva qualquer diferença socioeconômica, uma vez que ela é pautada pela ostentação das realizações pessoais e da pretensa autossuficiência da vida individual: um delírio amplamente induzido pelo capitalismo, sobretudo agora, na chamada “era digital” do neoliberalismo, mas que não esconde a disposição beligerante e o narcisismo doentio – quer dizer, o medo e a alienação – que estruturam as relações em jogo.
Em termos estéticos, a morfologia urbana torna-se banal e extremamente homogênea. E se for possível propor uma síntese do repertório mobilizado por essas construções, diríamos que, da utopia modernista que pregava, entre outras coisas, a transparência e a integração do interior e do exterior, parecem ter sido mantidos e transformados em fórmulas estéreis, basicamente, os princípios arquitetônicos que melhor se conformam às demandas do mercado no presente: a planta livre (fundamental para o “funcionalismo” de ambientes que reúnem, por exemplo, sala e cozinha) e a construção a partir de módulos (decisiva para a rapidez e a padronização das obras). Já a profusão linguística do pós-modernismo parece ter fornecido as bases, por um lado, para os “conceitos” ou “valores” – rasos como espelhos d’água – que buscam traduzir o indiferente diferencial dos empreendimentos; por outro, para as soluções que não abrem mão do decorativismo caprichoso, muitas vezes kitsch ou caricato, e da mistura dos usos, dos elementos e dos materiais, algo que se afina muito bem, hoje, com a impositiva presença dos dispositivos de conectividade e suas ilusões de sociabilidade, como agregadores imediatos de valor.
Ora, desde o início, a colonização e o capitalismo foram dependentes da invasão, da expropriação e da exploração inexorável da terra. A exaustão de tudo que deveria ser destinado ao uso comum e ao cuidado compartilhado é, portanto, consequência do próprio princípio de acumulação de riqueza pessoal: daí a tendência “natural” do capitalismo à pilhagem ostensiva, sem limites, do que possa ser convertido em mercadoria. A crise do capitalismo é, nesse sentido, também evidente: pois, apesar dos esforços negacionistas, é explícito o esgotamento das terras, das águas, dos ares, dos sujeitos explorados. Colocar em marcha a colonização do sistema solar, por meio de iniciativas privadas megalomaníacas ou de parcerias com o setor público, é sinal da ansiedade de bilionários diante da indubitável asfixia do próprio sistema capitalista de que dependem para respirar.
Enquanto isso, em muitas cidades, esses mínimos apartamentos contemporâneos, suspensos entre a terra e o céu, são por sua vez o lugar da vida apartada, naturalizada pela lógica do mundo neoliberal: pequenas células, como pequenas telas (ou celas), onde pessoas replicam rotinas cada vez mais automatizadas e atomizadas, ou seja, distanciadas de experiências realmente compartilhadas e da responsabilidade com o espaço público, mas seduzidas por uma aparente autonomia, sempre conectada, que afinal transforma em produto essa mesma forma de vida doentia.
Um exemplo pode servir: em torno de universidades públicas, estudantes cada vez menos compartilham o espaço nas chamadas repúblicas, pois mais se fecham – aqueles que podem –, sozinhos, em studios, essas claustrofóbicas quitinetes gourmet, construídas verticalmente e em série, no lugar das antigas residências com mais aposentos (já aqueles que não podem arcar com o custo desses espaços ficam a depender das insuficientes políticas de permanência estudantil, ou vão morar longe da universidade, ou mesmo desistem dos estudos e retornam para as cidades de onde vieram). No mencionado bairro da Carvoeira, na ilha de Florianópolis, pode-se ver essa transformação acontecendo em ritmo vertiginoso.
Na situação em que estamos, de iminente falta de condições para a sustentação da vida humana no planeta, a arquitetura e o urbanismo desempenham um papel crucial, e não há mais lugar para a condescendência de seus protagonistas, principalmente daqueles que ocupam funções diretamente ligadas às políticas públicas. Pois já não se trata de impor soluções para a modernização das cidades e da sociedade, seguindo as agendas de Haussmann, Le Corbusier, Lúcio Costa ou tantos outros, com o respaldo de Estados intervencionistas afinados com o capital.
A questão, agora, é imaginar a própria continuidade da vida: como podemos viver em comum, cuidando uns dos outros e do nosso entorno, ocupando as cidades de acordo com uma lógica pós-capitalista? Responder a essa questão implica repensar os espaços, os usos, os hábitos, as necessidades, os fluxos, os meios da responsabilidade e da participação (etc.), de tal modo que as nossas vidas e os ambientes que habitamos não nos sejam espoliados; ou ainda, de modo que nossas formas de vida sejam, elas mesmas, o exercício da invenção de um futuro possível, e não o resultado da violência, do condicionamento, da especulação sobre a terra e da sua inclusão num circuito de transações financeiras. Sim, nesse sentido, é preciso mudar muita coisa, ou quase tudo.
Artur de Vargas Giorgi é Professor de Teoria Literária
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq