POR ARTUR DE VARGAS GIORGI
Os caminhos da arte como meio de simbolização confundem-se, em sua origem quase imemorial, com os modos de transformação da escala das coisas no mundo. As figuras desenhadas nas paredes de cavernas como Chauvet ou Lascaux já operavam essa alteração fundamental: miniaturizavam os seres.
Se um símbolo pode ser entendido como aquilo que permite que indivíduos de uma comunidade se reconheçam a si mesmos, quando reunidos em torno de formas que traduzem e dão coesão a uma visão de mundo compartilhada, então, com efeito, nessas imagens estariam registradas algumas das mais antigas e elementares expressões de uma visão simbólica da realidade. Como escreveu Jorge Romero Brest, as “coisas” presentes no mundo podem oferecer um repertório de sugestões para a criação de formas plásticas. Mas essas formas se transformam em símbolos apenas em razão do seu poder de comunicação, ou seja, quando superam a individualidade e se impõem a pessoas que encontram nelas “o modelo que constrói a vida que elas vivem”.
Agora, em muitos aspectos, como sabemos, a modernidade ocidental significou a crise das formas simbólicas, isto é, a crise das visões de mundo capazes de manter uma unidade comunitária, devedora da continuidade das tradições e da comunicabilidade da experiência compartilhada. Encontraremos no romantismo alemão – como em Novalis ou F. Schlegel – um testemunho da fragmentação que unirá o Ocidente num mundo sem todo. E no século XIX, capítulo decisivo na ocidentalização das formas de vida, muitas vozes apontarão o crepúsculo dos ídolos, a morte de Deus, a perda da aura, o desencantamento, a atomização, em suma, o tempo em que tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar. Não à toa, numa sequência de pinturas de Monet, a Gare de Saint-Lazare – o motivo dos trens a vapor como emblema da modernidade – se faz portátil, mas quase impalpável em meio à atmosfera enfumaçada, condensando desse modo uma disposição ambivalente, entre a aposta no progresso e a melancolia.

Monet, Série Gare Saint-Lazare
Em outras palavras: a expansão do mundo moderno coincidiu com a escansão e a diminuição em série desse mesmo mundo, uma condição que foi experimentada com euforia, mas também com mal-estar. E é realmente notável o repertório dos dispositivos de miniaturização que atravessaram os últimos dois séculos, desde a invenção do daguerreótipo às mínimas, inesgotáveis e onipresentes imagens digitais.
Claro, nesse arco, passaríamos pelas Exposições Universais e pela invenção dos panoramas; pelos magasins de nouveautés e pelas Passagens de Paris; pelas formas de reprodução técnica que disseminaram jornais e revistas ilustradas; pela emergência do cinematismo e pelas fotografias aéreas; pelos meios de comunicação a longa distância; pela industrialização dos jogos e dos brinquedos, das quinquilharias e dos souvenirs; pela institucionalização do colecionismo e pela museificação; pela definição do inconsciente como arquivo “infinito” e pela física quântica; pelas diásporas e pelos exílios; pela televisão non-stop e pelo vídeo; pelo difícil aprendizado da arquitetura de Las Vegas; pela viagem à Lua e pelas perspectivas de exploração do espaço; pela desmaterialização da arte e pela ascensão dos particularismos da cultura etc.
De acordo com essa perspectiva, poderíamos dizer que um dos maiores desafios legados à arte contemporânea parece ser o de criar formas plásticas que, mesmo sendo parciais e transitórias – como se tocadas por um incontornável vazio – tenham ainda assim alguma capacidade de promover o contato e o enlace comunitário. Valeria dizer: formas frágeis, mínimas, talvez, mas com poder de comunicar um modo coletivo de vida, numa visão de mundo não total e sim compartilhada em situações que são sempre específicas; formas que não se esgotem, portanto, na superfície indiferenciada da mera informação, no automatismo das respostas que não imaginam nada além do já dado ou no deserto que tantas vezes configura o fluxo torrencial das redes, com sua moeda miúda de compartilhamentos e likes.
Exímios miniaturistas confrontaram esse desafio com proposições bem diferentes. A seu modo, Duchamp foi sem dúvida um dos mais vigorosos na arte da portabilidade e da escansão; assim como León Ferrari, Oscar Esteban Conti (Oski), Liliana Porter, Albertina Carri, Nelson Leirner, Walmor Corrêa, Mohamad Hafez ou Sebastián Gordín, com elaborações que ativam contextos singulares.
Ao longo da sua carreira, León Ferrari, por exemplo, engarrafou variados objetos; engaiolou miniaturas de santos e de animais; fez intervenções em bonecos, em aviões, tanques e carros de brinquedo; recorreu a baratas e ratazanas de plástico; construiu maquetes; e na década de 1980, quando exilado em São Paulo, usou módulos seriados de letraset (comumente empregados em projetos arquitetônicos) para apresentar, com graça corrosiva, visões de uma sociedade enlouquecida pela normalização da dinâmica urbana e da opressão política. Já Albertina Carri, no filme Los rubios (2003), valeu-se de bonecos playmobil como suplementos para um trabalho de rememoração de uma história familiar a rigor inalcançável, ou seja, a sua própria história de filha de um casal de militantes que foi sequestrado e assassinado, em 1977, pela ditadura na Argentina.
Como vemos, há nas formas de miniaturização um elemento lúdico incontornável. Mas a potência do jogo não pode ser diminuída. Ao contrário, a repetição que repõe em escala as “coisas” do mundo faz parte de uma complexa economia material e simbólica que, de fato, parece nos atravessar a todos. É exatamente o que diz Nenê (Marcelino Melo), jovem artista alagoano radicado em Campo Limpo (bairro da zona sul de São Paulo), celebrado pelas miniaturas – casas, comércios – feitas com materiais recicláveis e que compõem seu projeto chamado Quebradinha: diante do risco de apagamento da sua infância no sertão de Alagoas, ele buscou “eternizar as memórias, para que eu olhe e não esqueça”, como afirmou em entrevista a Marcella Franco. “Pego as coisas de que eu me lembro lá da rua em que eu vivia correndo e em que eu brincava com meus amigos, e vou criando um coletivo. Não é só sobre mim, não só sobre o outro, é sobre todos nós”. Para o artista, o gesto de miniaturizar o mundo é também um enlace: “é uma coisa meio ancestral, eu sou a continuação dos meus antepassados”.
É como se cada miniatura recolocasse em cena – é como se reciclasse – o próprio nascimento da arte, que assim reaparece da bruma dos tempos, trabalhando entre o vir-a-ser e a extinção, se pudermos nos valer das palavras de Walter Benjamin. Nesse sentido, a repetição que elas encerram é como o “mais uma vez” que para a criança é, segundo o autor, a “alma do jogo”, uma força intensa que se mostra igualmente poderosa no “impulso sexual no amor”. “E não foi por acaso que Freud acreditou ter descoberto um ‘além do princípio do prazer’ nessa compulsão”, frisou Benjamin: “de fato, toda e qualquer experiência mais profunda deseja insaciavelmente, até o final de todas as coisas, repetição e retorno, restabelecimento da situação primordial da qual ela tomou o impulso inicial”.
Artur de Vargas Giorgi é Professor de Teoria Literária da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.