Flávio de Carvalho, Retrato de Mário de Andrade, 1939.

A traição dos retratos

Tratando de capturar a viva irredutível a qualquer pose, certos retratos se apresentam como traições para aqueles que se reconhecem, em suas imagens, à beira do irreconhecível

POR ARTUR DE VARGAS GIORGI

É um lugar comum dizer que, na pintura de um retrato, o que mais importa, para o pintor ou a pintora, é captar a personalidade da pessoa retratada: o que estaria em jogo não é tanto a precisão do olhar e da mão que registram a exata aparência física – e com isso a “identidade”, a “individualidade” etc. –, mas sim, digamos, a percepção de aspectos, às vezes ínfimos, quase imperceptíveis, que fazem aparecer a singularidade, com efeito fugidia, de quem é o motivo da pintura.

Assim, o realismo não é, necessariamente, garantia para um bom retrato. E até poderíamos dizer que muitos retratos considerados sem vida ou sem personalidade podem ser impecáveis em termos formais: como espelhos, parecem apenas redobrar com neutralidade, em sua superfície, o que foi colocado à frente. É por isso que, em torno de olhares profundos ou de sorrisos sutis, de mãos levemente pousadas ou de punhos austeramente fechados, de inclinações do pescoço ou de troncos firmemente postados – em suma, em torno de gestos ou expressões que apontam não para a fixidez e o realismo da forma, mas sim para as marcas do tempo e para a movência das emoções e das disposições do espírito, encontra-se, em geral, o que é buscado ou descoberto num retrato: o traço da diferença do retratado.

Muitas vezes, além dessas expressões, certos signos ostentados são frequentes em obras do gênero: próceres, príncipes e princesas, grandes perfis foram retratados, ao longo da história, por meio de semblantes menos destacados do que suas posições e insígnias oficiais. No corpo majestático – simultaneamente corpo humano e corpo do poder – é a gravidade da função representada que, de fato, pesa mais. E, ainda assim, mesmo diante da observância dos brasões e das bandeiras, dos tronos e dos trajes, dos livros e dos louros, das genealogias e dos gênios, retratistas e seus retratos trataram de dar a ver, tanto quanto possível, algo do invisível: o traço quase ausente, essa mínima pausa, por assim dizer, de uma presença viva que sempre escapa para além ou aquém do quadro, irredutível a qualquer pose.

Desse modo, não deve causar espanto que certos retratos, tratando desse traço, se apresentem afinal como traições, que ganham relevância justamente pelas denúncias feitas por aqueles que se reconhecem, em suas imagens, à beira do irreconhecível. E embora cada situação seja sem dúvida específica ou particular, mais interessante, no caso, talvez seja frisar essa tensão, que às vezes chega a ser uma demanda de retratação, como uma espécie de sintoma que expõe a estranheza sentida pelos sujeitos quando confrontados com o irrepresentável que neles habita.

Lasar Segall, Retrato de Mário de Andrade, 1927.

Mário de Andrade foi retratado diversas vezes, por vários artistas. E são conhecidas certas avaliações que ele teceu quando confrontado com sua própria imagem. As telas feitas por Segall, Portinari e Flávio de Carvalho interpelaram o escritor de forma insistente, movendo-o entre os extremos. A respeito do retrato feito por Segall em 1927 o juízo de Mário oscilava, marcando a ambivalência de suas disposições. Aos olhos do escritor, o pintor lituano acertara na profundidade da contemplação e do estudo, mas essa mesma profundidade, como efeito de escavação, também trazia à tona o que havia de desequilibrado, de perverso ou pervertido em sua personalidade “feiamente sensual”.

Em outubro de 1941, Mário de Andrade escrevia no Diário de São Paulo, colocando essa tela em comparação com seu retrato feito dois anos antes por Flávio de Carvalho. Nesse comentário, Segall vale como confirmação; já Flávio especula pelo avesso: “Quando olho para o meu retrato feito pelo Segall eu me sinto bem. É o meu eu convencional, o decente, o que se apresenta em público. Quando defronto o meu retrato feito pelo Flávio, sinto-me assustado, pois vejo nele o lado tenebroso da minha pessoa, o lado que escondo dos outros”.

Flávio de Carvalho, Retrato de Mário de Andrade, 1939.

O retrato feito por Portinari em 1935 era, ao que parece, o que mais agradava ao escritor, que é apresentado com o tronco forte e largo, sem os óculos, vestindo apenas camisa, com o colarinho desabotoado – como se estivesse apaziguado, seguro na amplitude do horizonte, confortável em si mesmo e, digamos, em seu cabotinismo. A respeito dessa tela, Mário escrevera em carta ao pintor de Brodowski, novamente em chave comparativa com o quadro Segall, então avaliado sob outra lente:

Você me revelou o meu lado angélico, ao passo que o Segall me revelou o meu lado diabólico, as tendências más que procuro vencer. Às vezes me paro em frente do seu quadro e fico, fico fico, não só perdido na beleza da pintura, mas me refortalecendo a mim mesmo. Porque de fato você mais que ninguém não apenas percebeu, mas me revelou que eu… sou bom. Seu quadro me dá confiança em mim, me dá mais vontade de trabalhar, de continuar, é um verdadeiro tônico.”

O escritor não se via somente posando para tais artistas. Em certos casos, sentia-se pintando, ele mesmo, a imagem arlequinal de Mário de Andrade. Em carta de julho de 1941 a Henriqueta Lisboa, ele diria: “Assim que o Flávio de Carvalho principiou me pintando na primeira pose, tive uma sensação violenta de que eu é que estava me pintando!” – uma sensação que, ditada pelas relações travadas entre os retratistas e o retratado, entre contendas e afinidades, ele estenderia à sua imagem feita por Portinari, mas não à tela feita por Segall. Voltando às comparações, de novo Mário ajuizaria:

Às vezes chego a detestar (me detestar) o quadro que o Segall fez. É subterraneamente certo, mas, sem vanglória, o do Portinari é mais certo, porque é o eu de que eu gosto, que sou permanentemente e que chora, ainda e sempre vivo, mesmo quando a parte do Diabo domina e age detestada por mim. Esse quadro do Segall não fui eu que fiz, juro.

Às vezes chego a imaginar que, no caso, o Segall tem mais valor, porque atingiu, mais longe, o mais sorrateiro dos meus eus. Mas também penso que pra fazer o meu retrato pelo Portinari, é preciso uma pureza de alma, uma dadivosidade de coração que raros chegam a ter. E que isso é melhor que ter o dom de descobrir os criminosos. O Segall fez papel de tira. O Portinari não, certo ou errado, contou aos homens que os homens são melhores do que são. E é certo que ao lado dele eu me sinto melhor…

Candido Portinari, Retrato de Mário de Andrade, 1935.

Mário de Andrade por certo não está sozinho entre os tratamentos e as retratações de seus retratos. Ferreira Gullar, por exemplo, o acompanharia em situações igualmente complexas, talvez ainda mais desconcertado entre seu orgulho nobilitador e a estranheza de ver-se vendo a si mesmo como um outro, desconhecendo-se assim.

Em um documentário chamado F de faca (2010), o poeta aparece muito à vontade e sincero – nada fake, diríamos – em seu apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro, travando uma conversa atravessada, feita também de interrupções corriqueiras: telefonemas, campainha, trabalho etc. E, no entanto, há algo notável nesse despojamento: um corte, de fato.

Em certo momento, Gullar conduz entrevistadora e cinegrafista pelos cômodos da casa. Sua coleção de arte vai sendo mostrada: esculturas, fotos, retratos, quadros de distintas “escolas” (Siron Franco, Milton Dacosta, Iberê Camargo, Rubem Valentim, Gilvan Samico, Oscar Niemeyer, Aluísio Carvão, Arcangelo Ianelli etc.), além de algumas telas próprias, inclusive cópias – autênticas – que ele mesmo fez de Léger e Mondrian. Uma das últimas telas, pendurada na parede de um quarto ao final do corredor, mostra um retrato dele, seu busto. O quadro provavelmente foi um presente (parece ser de Bracher), o que não impede o poeta-pintor de logo declarar: o retrato “é horrível”; e ainda “era pior”, porque a boca, ali, foi refeita. Sim, o próprio Gullar “consertou o retrato”, como ele afirma.

E logo defende: o trabalho “pictoricamente é muito bonito”, “independente de ser retrato”; “como quadro é muito bonito”. Contudo, estava horrível, uma vez que ele, Ferreira Gullar, via-se deformado na forma que fizeram dele: além da “testa absurda” e da “boca gigantesca”, explica, um olho “derramava um negócio branco”, como se estivesse “cheio de remela” ou “com uma lepra”. A jovem entrevistadora arrisca questionar, em tom de brincadeira, se o pintor não estaria “sacaneando” com ele. Gullar dá uma risada e repete: “Eu corrigi o retrato dele… Era doido demais, não tem nada a ver comigo… E então eu dei pra corrigir o retrato…”

Gullar também parece “sofrer” desse cabotinismo que é, na verdade, ordinário. E com a consciência que, nas palavras de Mário de Andrade, “reconhece que o nosso indivíduo é por muitas partes coisa abjeta que a horroriza” (“Do cabotinismo”, 1939), o poeta reforça seu disfarce, sua máscara bem posta, por assim dizer, como escudo diante do enigma do sujeito. Em outras palavras, um retrato é fiel a si mesmo: o que ele traça, sem reparos, é a ausência de uma personalidade essencial. Daí que todo gesto reparador seja sempre o reforço do engano, isto é, não a captura de uma identidade pura, mas a reafirmação da impureza: a máscara, a persona, em outro tratamento, como um novo e traiçoeiro re-trato de cada herói sem nenhum caráter.

Artur de Vargas Giorgi é Professor de Teoria Literária
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq

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