Horace Vernet, Première messe en Kabylie, 1854

A citação como procedimento

Antes de ser uma espécie de fio condutor da arte na modernidade, a citação era já um princípio operatório elementar, ativador da vida e da sobrevida das imagens, articulador das diferentes histórias que elas contam

POR ARTUR DE VARGAS GIORGI

Muitíssimo antes dos memes e das postagens e re-postagens virais; muito antes dos processos contemporâneos de montagem e releitura de arquivos; bem antes, ainda, da operação pós-modernista de pastiche ou paródia do moderno; e antes, inclusive, dos diferentes usos modernistas da apropriação – enfim, antes de ser uma espécie de fio condutor das tortuosas vias da arte na modernidade, a citação era já um procedimento elementar: o ativador da vida e da sobrevida das imagens, o articulador das diferentes histórias que elas contam.

Expressões, gestos, posturas, elementos figurativos, esquemas compositivos: desde que a produção de uma imagem está atrelada a uma cadeia de produções, ou seja, desde que uma imagem se enlaça a um repertório cada vez mais vasto de imagens, cada elemento mobilizado em sua elaboração – num quadro, gravura, baixo-relevo, afresco etc. – é parte de um vocabulário compartilhado, que o artista maneja de acordo com uma dada situação.

Aí se jogam as estratégias e se travam as polêmicas: no terreno das escolas e das tradições, mas também no espaço das traições, dos saques, das rupturas etc. Em outras palavras, na história das imagens – uma história feita de lutas, como escreveu Carl Einstein –, toda forma é uma fórmula: uma fórmula que cada citação retoma, de maneira mais velada ou mais explícita, a partir de suas aparições anteriores, ao mesmo tempo em que a diferencia dessas ocorrências precedentes, justamente porque a situação do seu aparecimento é outra, a cada vez.

Com isso podemos entender a estranha sensação de familiaridade que parece impregnar, por exemplo, retratos de próceres ou, de forma ainda mais marcante, talvez, a pintura histórica. Gênero maior no século XIX, dependente do domínio da minuciosa técnica do desenho, a pintura acadêmica de quadros históricos – quadros em geral marcados pelas propagandas nacionalistas do período – pressupõe também uma erudição, isto é, a formação de um amplo repertório visual, o que em termos práticos significa: para ser um excelente pintor do gênero histórico é preciso, antes de tudo, copiar quadros célebres. Nada de espantoso nesse método, é claro: como sabemos ao menos desde Aristóteles, aprendemos imitando, e por isso na pintura o estudo consiste, muito frequentemente, na cópia do que foi feito pelos grandes mestres. Quanto maior a abrangência do repertório visual adquirido, maior, obviamente, o vocabulário do pintor, quer dizer, mais variadas as fórmulas que ele passa ter a sua disposição.

Os estudos feitos por pintores como Victor Meirelles (1831-1903) e Pedro Américo (1843-1905) mostram essa aplicação: a busca da exatidão na fixação da indumentária, do gesto, da expressão, do sentimento, em suma, a busca pelo efeito. Afinal, como pintar a dor? E a alegria? Qual a imagem tradutora da altivez? E quais são as expressões da dúvida ou da vergonha? Como mostrar o movimento em um campo de batalha? E a gravidade do tempo, como ela é registrada? Enfim, quais os traços que já formularam, na linguagem pintura, essa ordem tão variada – e com frequência tão violenta – de experiências humanas? Nesse sentido, os estudos são a afirmação do exercício continuado da cópia, para a aquisição e o fluente manejo dessas fórmulas.

Victor Meirelles, Primeira missa do Brasil, 1861

Não à toa, as pinturas históricas de Meirelles e Américo deram fartos motivos para que fossem encontradas em seus quadros semelhanças com outros trabalhos, de artistas renomados. Assim, em sua trajetória como pintor, com largo período de formação e atividade na Europa, Pedro Américo foi confrontado por críticos que o acusavam de plágio. Meirelles, igualmente – em formação e polêmicas em torno de modelos copiados. De maneira que poderíamos dizer sobre os seus detratores: eles pareciam não compreender que a citação é um procedimento, e que a maestria, digamos ainda, não está em recusá-la, mas em mobilizá-la como princípio operatório que se torna singular pelo uso que o artista dela faz.

A primeira missa do Brasil, de Victor Meirelles, exposta no Salão de Paris de 1861, repõe a composição de Primeira Missa na Cabília, de Horace Vernet? Nada mais provável. E no caso da incontornável Batalha do Avaí, de Pedro Américo, concluída em 1877? Como nos lembra Ronaldo Vainfas, a monumental tela não foi pintada no sítio do decisivo confronto na Guerra do Paraguai, mas sim em Florença, na Itália, mais precisamente na biblioteca do convento da Santíssima Anunciata, que o pintor tinha a sua disposição. É assim obra do contato e do trabalho com acervos europeus.

Em tal situação, por que depreciar a tela, como fizeram vários críticos da imprensa brasileira, tomando-a por cópia da Batalha de Monte Bello, de Gustave Doré? A pose do General Osório será menos enfática se for citação da pose do Carlos Magno pintado por Paul Delaroche? E o cavalo branco do Duque de Caxias será menos imponente se for semelhante ao cavalo de Napoleão que teria sido feito por Andrea Appiani? A mulher, a criança e, principalmente, o velho cego, abrigados numa carroça destruída pelo combate horroroso, serão menos pungentes se inspirados num conjunto de figuras já formulado em Batalha de Smalah, de Horace Vernet? Vemos que as respostas mais significativas não serão dadas a partir de tais perguntas.

Pedro Américo, Batalha do Avaí, 1872-1877

Gustave Doré, Batalha de Monte Bello, 1859

Então melhor seria questionar: não são manejados, todos esses elementos citados, em uma singular composição? E nessa composição não está em jogo um acontecimento agônico, no qual opera uma ambivalência desconcertante, já que a imensa tela parece reproduzir a narrativa chauvinista da vitória brasileira, ao mesmo tempo em que produz, de fato, o acachapante efeito de uma violência injustificável e vergonhosa, a visão do absurdo e da destruição próprios da guerra? Não reforçaria esse dinamismo absurdo a desproporção das forças retratadas? E não frisaria esse desconcerto o autorretrato do pintor, que se colocou no centro mesmo da tela, com os olhos vidrados, como se daí interpelasse cada espectador de forma insistente, chamando-nos a todos para o vertiginoso olho do furacão da história?

As citações parecem claras: elas repõem fórmulas que são conhecidas, e com isso evidenciam um repertório compartilhado, um percurso traçado, uma observância dos códigos, inclusive no sentido de Pedro Américo cumprir com uma encomenda oficial do Estado, comissionado como membro da Academia Imperial de Belas Artes. O efeito dessas citações, no entanto, é produzido pelo pintor através do arranjo específico das fórmulas, e aponta para uma leitura a contrapelo da Guerra do Paraguai: uma leitura que se afasta das narrativas do ufanismo imperial e do heroísmo militar, como já salientou Lilia Schwarcz em leituras da obra. E é nesse ponto – no caso, entre a reprodução e a produção, ou entre a criação e a crítica – que devemos buscar o mérito do artista.

Édouard Manet, Olympia, 1863

Ticiano, Vênus de Urbino, 1538

Giorgione, Vênus adormecida, 1508-1510

Exemplos semelhantes fazem parte do cânone da história da arte ocidental. Manet – para dar apenas um exemplo – foi duramente criticado por telas como Olympia e Almoço na relva. As obras não só eram cópias, mas cópias ruins: os juízes apontavam o acabamento tosco dos volumes, o desenho precário, os conjuntos sem coesão, os fundos grosseiros, chapados como tapeçaria etc. E, contudo, o gesto decisivo de Manet consistia justamente em, citando-as, avacalhar as fórmulas da bela arte consagradas por mestres como Giorgione, Ticiano e Rafael. Afinal, como sustentar, em meados do século XIX, numa Paris burguesa e venal, que o erotismo é doméstico e próprio de amores lícitos, ou que a musa é incorruptível e descansa, serena e nua, como estátua de mármore, sobre a grama de um retiro campestre?

Pedro Américo, Tiradentes supliciado, 1893

Pedro Américo repetiria seu procedimento em outros trabalhos. No Tiradentes supliciado (1893) citaria fórmulas presentes em quadros importantes, ao que parece enfatizando que sua composição era feita, precisamente, de pedaços, de tradições e traições, assim como o corpo da República, figurado na tela pelo próprio Tiradentes, feito mártir. Com suas fórmulas, esse corpo em fragmentos cita as dissecações de Rembrandt; as cabeças cortadas de Géricault; as cabeças de São João Batista, de diversas autorias; o braço da Pietà esculpida por Michelangelo, o braço do Cristo morto feito por Caravaggio, mas também o braço do Marat morto pintado por David etc. Como observa Elaine Dias, a composição geométrica, com madeiras em forma de cruz, reforça esse aspecto fragmentário. Mas, novamente aqui, é a singularidade do uso das citações, em uma situação específica, o que nos desconcerta: os novos tempos republicanos são anunciados com a retomada das muitas fórmulas da violência.

Artur de Vargas Giorgi é Professor de Teoria Literária
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq

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