Vilanismo. Os meninos não sei que juras fraternas fizeram, 2025.

A Bienal – arte e responsabilidade

A proposta da 36ª Bienal de São Paulo busca deslocar a mediação do texto para a da experiência sensorial e interpretativa, convidando o visitante a estabelecer seus próprios vínculos e sentidos no interior do pavilhão

Por Fabrício Reiner

A 36ª Bienal de São Paulo – nem todo viandante anda estradas – aposta por uma experiência que procura privilegiar o encontro direto entre público e obra. A proposta busca deslocar a mediação do texto para a da experiência sensorial e interpretativa, convidando o visitante a estabelecer seus próprios vínculos e sentidos no interior do pavilhão; afinal, como avisa o curador, essa bienal é sobre a humanidade enquanto verbo e não sobre identidades e suas políticas. Na prática, porém, essa opção revelou-se também uma barreira, sentida pelos visitantes e por uma noção geral de descaso. A reclamação mais renitente é a de que, sem legendas ou indicações claras, tornase difícil identificar artistas, relacionar processos e acessar contextos que sustentam muitas obras. Como bem enfatizou Fabio Cypriano – em seu texto ‘falta de contexto confunde 36ª Bienal de São Paulo, publicado na Arte!brasileiros – a ausência de pistas imediatas tende a favorecer quem já possui bagagem teórica e redes de leitura, enquanto deixa estudantes, professores, jornalistas e grande parte do público em situação de frustração, com menos ferramentas para apreender, discutir e difundir o que veem.

Essa opção curatorial, justificada como gesto experimental e democrático, na união da humanidade enquanto prática, foi bem defendida por Bruna dos Anjos em sua reflexão – texto não é contexto: resposta a “falta de contexto confunde 36ª Bienal de São Paulo”, de Fabio Cypriano, publicada na revista Glac – e, de fato, se confirma na afirmação de dos Anjos de que nem tudo precisa ser explicitado; a compreensão também nasce do estranhamento, desde que haja, como nos lembra Paulo Freire, disponibilidade para ser afetado e para ler criticamente o mundo. 

Contudo, distante de cumprir a pretensão da curadoria, esse estranhamento atua no espaço como ruído comunicativo, condicionando a fruição e a compreensão do visitante às opções curatoriais que prevalecem sobre as obras. Nesse sentido, essa concepção abre mais uma vez para reflexão sobre os modos pelos quais a arte produz e mantém distanciamentos em relação aos públicos, de modo que a promessa de democratização do acesso e da compreensão revela-se frequentemente uma prescrição retórica mais do que uma prática efetiva; tomar esse diagnóstico como ponto de partida permite ler a mostra não apenas como um inventário de obras e discursos curatoriais, mas como um campo de operações onde se negociam regimes de inteligibilidade, saberes exigidos e protocolos de recepção que selecionam quem pode participar legitimamente do debate artístico. E nisso, valho-me de uma referência programática a Joseph Beuys e sua ação ‘como explicar quadros a uma lebre morta’, de 1965. Abordagem que nos serve aqui apenas como índice sintomático: gesto que conjuga ritual, simbolismo e a exigência de uma reciprocidade comunicativa não alcançada, mas que pode iluminar a possibilidade de que certas práticas contemporâneas constituam a incompreensão não como falha localizada, mas como efeito desejado ou tolerado de uma arquitetura institucional e discursiva. A partir desse sinal, tornase produtivo deslocar a questão da incompreensão do plano da deficiência do público ou da curadoria para o da crítica das condições de enunciação e circulação do sentido: quais saberes são naturalizados nas curadorias; que dispositivos espaciais e linguísticos operam como filtros; de que modos as estratégias educativas são concebidas como apêndices compensatórios e não como reassentamentos do próprio regime de visibilidade. 

Esta reflexão propõe, portanto, que a Bienal seja lida como laboratório de dissociações possíveis entre obra e audiência, e que a análise subsequente trate essas dissociações não como incidentes periféricos a serem corrigidos por mediação, mas como operações estéticas e institucionais que exigem reavaliação crítica se o objetivo for, de fato, uma democratização que intervenha nos fundamentos do fazer, do expor e do compreender; e no qual possamos, efetivamente, ‘imaginar um mundo onde enfatizamos nossa humanidade’, como quer o curador.

Com efeito, a curadoria dessa Bienal tende a operar com um horizonte de pressupostos tão familiares para seus agentes que deixam de ser visíveis para a maior parte das pessoas: formas de saber institucionalizadas que orientam escolhas estéticas, linguagens (inclusive as literárias) e prioridades de exibição simulando terem sido colhidas em espaços e comunidades marginalizadas. Esses saberes que emergem na mostra, entretanto, mais que ancestrais, são produzidos em universidades, centros de pesquisa, museus, e sobretudo nos circuitos de arte, e entram na curadoria como um mapa tácito de quais genealogias artísticas merecem relato, quais práticas contam como “arte”, quais linguagens exigem explicação e, por fim, quais audiências são consideradas interlocutoras legítimas. O efeito é o de transformar preferências históricas e escolhas políticas em aparentes verdades travestidas de ‘bom-mocismo’ e críticas veladas aos algozes dessa pretensa ‘humanidade’ (enquanto conceito amorfo) deslocando o problema da disputa por sentido, inclusive político, para o terreno da obviedade.

Nadia Taquary. Ìrókó: a árvore cósmica, 2025.

Quando essa anatomia epistemológica quer permanecer invisível, a Bienal reproduz modelos de legitimação que privilegiam não apenas leituras eruditas e convenções com o circuito internacional da arte, como ainda acaba por descredibilizar saberes vernaculares, comunitários ou transdisciplinares, atuando no sentido oposto àquele que diz sustentar. A linguagem curatorial ali disposta, muitas vezes impregnada de jargão crítico e referências teórico-históricas, funciona como filtro que seleciona não só obras e artistas, mas principalmente públicos. Os que já dominam o léxico e os referenciais reconhecem, circulam e ampliam o discurso; os demais são empurrados para a margem da experiência. Como acontece em obras como as de Nádia Taquary e Gê Viana; que, de modo inaugural, orientam possibilidades de fruição da mostra. As legendas nos totens (frequentemente deslocados e protocolares) nem de longe acompanham a densidade desses trabalhos e reduzem camadas de sentido a sumários técnicos dirigidos ao circuito institucional, falhando tanto em mediar o encontro entre obra e público quanto em situar politicamente questões que as peças articulam.

Por outro lado, essas ‘legendas’, repletas de cronologias, citações canônicas e modos de narrar a modernidade e a contemporaneidade consolidam uma gramática de visibilidade que valoriza determinados modos de produção simbólica. Práticas performativas, comunitárias ou que se fundem com o cotidiano são frequentemente tratadas como “anotações” ou “casos especiais”, sujeitas a legendas explicativas ou a espaços auxiliares, em vez de serem integradas ao corpo central da exposição. Como nos casos das propostas apresentadas pelo Sertão Negro, pelo simulacro irônico do Vilanismo ou mesmo no gabinete mineral disposto por Marlene Almeida.

Ernest Mancoba. S. título, s.d.

Reverter a naturalização desses saberes curatoriais exige mais do que incluir um rótulo diverso nas explicações: requer deslocar as estruturas que definem relevância. É necessário explicitar os pressupostos curatoriais, democratizar os processos de seleção, abrir espaço para comissões e vozes que tragam outras epistemologias e conceber textos e percursos que dialoguem com diferentes formas de conhecimento e de públicos. Não se trata de abolir a complexidade teórica, mas de pôr essa complexidade em diálogo com outras inteligibilidades, reconhecendo que o visitante não é sujeito homogêneo a ser educado, e sim um coro de saberes que pode reconfigurar o próprio regime de visibilidade.

Ler a Bienal por esse viés muda a responsabilidade: a incompreensão deixa de ser apenas falha e se torna um sintoma institucional. Quando a curadoria admite suas prioridades epistemológicas e mercadológicas, redesenhando seus modos de enunciação, abre-se a possibilidade de que a exposição deixe de ser um teste de pertença e passe a ser um espaço onde diferenças de conhecimento se encontram, se confrontam e se transformam: no espírito de confluências humanas que a curadoria pretendeu, desde o princípio, sustentar.

Tanka Fonta. Philosophies of being, perception and expressivity of being, 2025.

A Bienal, ao privilegiar uma estética que se sustenta sobre polidez e complacência formal, vistos sobretudo no salão refrigerado que traz especialmente pinturas (de Ernest Mancoba, Huguette Caland, Gozo Yoshimasu, Heitor dos Prazeres, entre outros), revela uma contradição profunda entre o gesto expositivo e a condição humana que quer abordar. Em vez de articular fricções e tensões (forças que obrigam a arte a entrar em disputa com o mundo), a seleção organiza suas peças segundo uma lógica de harmonia visual e coesão museal, transformando conflitos históricos e políticos em arranjos sensoriais controlados. O efeito é duplo: por um lado, a obra perde a capacidade de incomodar; por outro, o público é convidado a uma experiência de consumo contemplativo que não o compromete com realidades exteriores aos dos circuitos institucionais.

Esteticamente essa escolha se manifesta na preferência por composições que suavizam arestas, por opções que priorizam a circulação fluida sobre interrupções e por textos que explicam sem arriscar. A tensão é domesticada pela cenografia, pela iluminação pensada para elogiar superfícies e pela sequência que privilegia a coerência temática em detrimento do choque; como se pode observar no exemplo de Tanka Fonta, posto na coluna central do pavilhão, que se faz mais bonito que contundente. O resultado é que o olhar do visitante é treinado para reconhecer qualidades plásticas e inteligências formais, mas não para reconhecer responsabilidades, redes de poder ou consequências materiais associadas às narrativas apresentadas. As obras, assim, funcionam como prova de virtude institucional mais do que como instrumento de existência social.

Além disso, quando o discurso da arte se afasta do cotidiano, o caráter performativo da exposição aumenta: as imagens e os objetos passam a operar como emblemas de uma sensibilidade consentida, e não como mediações que aproximam o espectador de vivências distintas. A separação entre a cena expositiva e a vida concreta produz uma ilusão de compreensão: o público acredita ter sido tocado porque experimentou emoção estética, sem, contudo, ser convocado a traduzir essa emoção em ação, diálogo ou reparação. Exemplos são as descrições das obras de Frank Bowling, em que a curadoria consegue misturar ‘expressionismo abstrato’ e cartografia na mesma frase, as de Ruth Ige, onde se privilegia o discurso do uso de materiais com ‘ressonância cultural’ para a elaboração de suas pinturas (seja lá o que isso queira dizer) ou no caso do conjunto apresentado pela Manauara Clandestina, artista que estabelece uma pesquisa efetiva e contundente em temas reais e urgentes, mas que se vê esvaziada em função das direções apresentadas no espaço pela proposta curatorial. Assim, essa ilusão favorece uma economia simbólica em que o reconhecimento substitui a responsabilidade e a empatia estilizada substitui a solidariedade efetiva.

Frank Bowling. Agnes, 2025.

A crítica deveria, nesse sentido, deslocar seu foco: não tratar apenas de avaliar a qualidade plástica ou coerência curatorial, mas de investigar os modos pelos quais os dispositivos expositivos e rotinas institucionais neutralizaram a potência de obras e artistas que são assertivos e impactantes. A Bienal deveria ser lida para além de seu conjunto de decisões técnicas – sequência de ‘capítulos’, relações escalares, materiais privilegiados, ritmos de visitação, etc. etc. – porque, nesses termos, a Bienal deixa muito a desejar. Afinal, só percebendo essas mediações é possível compreender por que uma obra, potente no enunciado, pode existir no espaço expositivo sem tensionar minimamente as estruturas que legitimam as mesmas injustiças ou desigualdades que ela parecia denunciar.

Portanto, reenquadrar a Bienal exige repensar a relação entre arte e responsabilidade. A curadoria deve valorizar procedimentos que introduzam dissonância, que exponham contradições e que criem pontos de encontro entre arte e experiências não institucionais. Isso passa por abrir a mostra a formatos que provoquem fricção – intervenções, narrativas interrompidas, textos que nomeiem agentes e estruturas – e por aceitar que a recorrência do desconforto é condição necessária para que a arte deixe de ser mero espelho e se torne ferramenta também de ação. Encarar esse deslocamento implica renunciar ao conforto de uma narrativa estética linear em favor de uma dramaturgia expositiva que transcenda a da coerência visual.

Sem essa mudança, a Bienal continuará a operar como um universo paralelo onde a humanidade é representada à distância, reduzida a imagens que embelezam a catástrofe sem questionar suas causas. Quando a curadoria encapsula a obra do contato direto com a vida na sua extensão, ela esvazia o sentido de intervenção artística e reforça o próprio isolamento institucional que a arte, em tese, deveria desestabilizar. Transformar a exposição em espaço de tensão permanente é a única forma de reabilitar a arte (e as instituições que a exibem) à capacidade de provocar mudanças reais na esfera pública.

Essa falta de contundência tem efeitos palpáveis na recepção. O visitante sai indiferente porque não é nem afetado nem convocado.  As comunidades e coletivos impactados positiva ou negativamente pelo que se entende por ‘humanidade’, inclusive na perspectiva da curadoria, não precisam de mais compilações estetizantes para serem observados: precisam de presença solidária, de articulação política e de medidas concretas que atuem sobre a destruição material e sobre a dilaceração social que insiste em permanecer. Ou estaremos todos fadados à imersão de lama, rejeitos e esquecimentos daqueles que continuam a financiar os discursos anódinos que se querem resolutos.

Fabrício Reiner é mestre em Filosofia com especialização em Culturas e Identidades Brasileiras (2016) e Bacharel em História (2005), ambos pela Universidade de São Paulo, aperfeiçoou-se em museologia e história da arte em Siena (2008). Desenvolveu e participou de diversos projetos acadêmicos e curatoriais junto a Biblioteca Mário de Andrade, Biblioteca Guita e José Mindlin e o Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Doutorando em História da Cultura pela USP, atua como pesquisador e curador independente.

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