Fonte inesgotável de imagens, o carnaval carioca propicia em alguns momentos obras singulares. Assim é a série Na lona, que Rogério Reis realizou ao longo de 17 anos, de 1986 a 2003, registrando com uma câmera Hasselblad foliões de rua em pontos distintos da cidade. A série se desdobrou em várias exposições no Brasil e no exterior, em livro (editora Aeroplano, 2001), e documentário (de Stefan Kolumban Hess, 2002), e entrou para a iconografia do carnaval carioca. Este ano, mais de duas décadas depois de ter dado por concluído este trabalho, ele o retomou, impulsionado por um amigo fotógrafo. As novas fotografias, realizadas em março de 2025, poderão ser vistas na exposição Deixa falar, que será inaugurada para convidados no sábado, dia 24, e para o público em 26 de maio, na Galeria da Gávea.
A exposição reúne cerca de 70 obras. Ao lado da produção deste ano, serão exibidas também fotos do ensaio original, parte delas em ampliações realizadas na época, a partir do negativo quadrado, 6×6, da Hasselblad que Rogério utilizava para este trabalho. Além disso, a galeria terá ainda exemplares de uma nova série, Samba no pé, surgida a partir da observação da dispersão dos blocos de rua no carnaval deste ano.
Curador da mostra, Evandro Salles observa, no texto de apresentação, o caráter dessas imagens de revelar, ao menos no instantâneo da fotografia, “a existência do impossível”: “Deixa falar revela o fio através do qual são amarrados sonhos, desejos, fantasias e realidade. Delineando um percurso interior que parece infinito, nessas fotografias o mundo de dentro se externaliza, se materializa, se reconfigura e se apresenta pleno à luz do dia apesar de sua aparente loucura e impossibilidade de existência”, escreve.
O projeto Na lona surgiu numa circunstância bem particular. Em meados dos anos 1980, Rogério integrava um grupo de fotógrafos, a agência F4, que buscava autossuficiência na produção e na distribuição de suas próprias pautas, sempre perseguindo uma identidade própria. Foi neste ambiente que ele produziu dois trabalhos marcantes: as séries Surfistas de trem (feita com Ricardo Azoury, que, diferentemente de Rogério, fotografava em cor) e Na lona – nos dois primeiros anos, em conjunto com Zeka Araújo, que também trabalhava com cor, enquanto Rogério se mantinha no pb, e o sociólogo Maurício Lissovsky, responsável por dar apoio conceitual ao projeto.
A ideia de documentar os foliões na rua surgiu pouco depois da inauguração do Sambódromo, em 1984. O espaço projetado por Oscar Niemeyer na Marquês de Sapucaí transformou o desfile das escolas de samba no Rio em algo espetaculoso e midiático, lembra Rogério. A imprensa passou a cobrir o evento com avidez, e o carnaval de rua, à exceção dos blocos mais populares, foi um pouco negligenciado. A ideia era a de dar as costas ao desfile das escolas, registrando pessoas anônimas em suas fantasias. Para isso, ele levava à rua (no Centro, na Zona Sul e nos subúrbios da cidade) uma imensa lona, onde os foliões eram convidados na hora a ser fotografados – o resultado teve tanta repercussão que o trabalho continuou pelos carnavais seguintes.
Agora, em 2025, uma circunstância inesperada o fez voltar ao projeto. Um amigo, Emmanuel Lenain, embaixador da França no Brasil e também fotógrafo, pediu a Rogério que saísse com ele à rua para que pudesse fazer um trabalho semelhante ao seu. Rogério disse que não estava interessado em retomar o ensaio, mas cedeu a lona e a assistente, e ainda ajudou a fazer um plano de trabalho. No segundo dia de carnaval, no entanto, resolveu passar na Cinelândia para dar um abraço no amigo. Ele conta:
“Chegando lá, vi que muita coisa tinha mudado em 17 anos. O que apareceu muito este ano foi a questão de novas afirmações sociais, a reparação histórica. No passado, tinha aquele folião que fazia uma coisa irônica, de crítica ao poder, de deboche, havia muitas personalidades políticas que apareciam nas fantasias de maneira bem-humorada. Mas neste ano não havia ninguém assim. Isso desapareceu. Atribuo à polarização entre esquerda e direita, porque as represálias são traduzidas hoje em agressão política”, avalia.
Animado com o que viu, ele voltou a fotografar na lona. Na exposição na Galeria da Gávea Rogério exibe 16 destas novas fotografias, ao lado de cerca de 40 obras do ensaio original, algumas delas vintage, com ampliações realizadas na época a partir de negativos de filme. Outras 16 obras, também produzidas este ano, são de uma nova série, Samba no pé. Morador no limite entre os bairros de Ipanema e Copacabana, ele é um atento observador do que acontece nas ruas. Gosta de sentar num banco do calçadão e simplesmente olhar. Foi assim que viu, após a passagem de um bloco na Avenida Atlântica, as pessoas ainda sambando no sabão que os garis já jogavam no asfalto, fazendo involuntariamente um desenho na espuma que ia secando. “São um lado mais simbólico e abstrato do carnaval, fotos que dialogam com o restante da exposição, formada por retratos”.
Esta é a segunda exposição de Rogério Reis na Galeria da Gávea. Em 2014, o espaço abrigou a mostra Ninguém é de ninguém, com o ensaio de pessoas na praia, os rostos cobertos com bolinhas coloridas, em que propõe uma reflexão sobre a utilização e o controle das imagens no espaço público.

