Antonio Bandeira | Pinacoteca do Ceará

Com uma natureza sinuosa, que tem como estratégia inicial um percurso pela autoimagem e por diferentes possibilidades biográficas, a mostra Amar se aprende amando comemora o centenário do artista cearense Antonio Bandeira (1922-1967). Nela, busca-se subverter alguns processos habituais de leitura, reflexão e percepção que, de certo modo, são calcados numa perspectiva eurocêntrica e branca, que nos chega de cima para baixo, provocando apagamentos e criando mitologias que referendam, em muito, “o outro”. Refletir sobre o contexto no qual o artista se forma e percebe o mundo – por meio das suas relações com o lugar, os entornos, as pessoas, as instituições e o cotidiano – contextualiza um importante território para este projeto.

A exposição parte de um mergulho na coleção do artista Antonio Bandeira da Pinacoteca do Estado do Ceará, adquirido em sua maioria no início dos anos 2000. O recorte apresentado é composto por mais de 600 itens, que incluem, além de um conjunto significativo de obras, um vigoroso percurso pela instância experimental do artista. É um caminho de intimidades e afetos que atravessa as diferentes fases de sua produção; não possui um caráter retrospectivo – na verdade, evidencia o gesto da sua composição poética, apresentando um conjunto de cadernetas, desenhos automáticos, colagens, estudos e telas que possibilitam uma leitura genética de seus trabalhos e delineiam a anatomia de alguns processos até a sua finalização. A exposição também é atravessada pelo interesse do artista na poesia, registrado em alguns poemas que contornam a mostra.

Antonio Bandeira nasceu na região central de Fortaleza, em 1922. Filho do ferreiro Sabino e de Dona Maria do Carmo, instaurou, por meio da sua produção plástica, uma potente modernidade em Fortaleza. Bandeira amava essa cidade, e a exposição é dedicada ao território afetivo que ele construiu a partir da sua relação com ruas, amigos, flamboyants, mercados e bares; a partir da sua luz e, principalmente, da cartografia sentimental que o artista elaborou em sua obra, com destaque para o seu interesse pela cultura popular, afro-brasileira, e para a produção de seus exus, figurações, retratos, paisagens e cidades.

Evocar uma ancestralidade negra, afirmativa e protagonista, que se elabora pelo desbravamento do mundo, de um corpo preto e nordestino, vindo de família simples, que ousa mover-se para outro lugar, é uma das propostas da exposição. Os encontros e as parcerias configuram um lugar elementar de construções coletivas, que abrigam e fortalecem a sua trajetória. Na exposição, evidenciamos uma pequena parte dessas incontáveis convivências que se relacionam diretamente ao projeto curatorial: a jornalista Eneida, a arquiteta Lina Bo Bardi e o reitor Martins Filho.

A mostra se inicia com um percurso biográfico que indica interesses, posicionamentos e afirmação do artista. Os imponentes “Autorretratos no espelho” (1945) e “Autorretrato na garrafa” (1946) recebem o público, e a metáfora da imagem refletida revela a diversidade de sua figuração. Outra parte fundamental da exposição é formada pelos estudos e processos que se relacionam com as obras “Composição” (Bicho), de 1947, e “Favela”, de 1949, as quais trazem questões centrais da sua produção, como as cidades e arquiteturas – com seus contextos orgânicos e boêmios – e os estudos de corpos, rostos, anatomias e antropomorfias. Esse vasto núcleo também abarca algumas experimentações em colagens, design gráfico e ilustrações. A parte final dedica-se à fase abstrata do artista, a sua produção a partir de Paris, a sua aproximação com Bryen e Wols, com quem formou o grupo BANBRYOLS e o contexto de seu abstracionismo no Brasil. Todas essas referências compõem uma grande cronobiografia, composta por imagens e textos.

Escapando de um engessamento linear e cronológico, e por entender que a trama do bordado histórico se faz de forma sinuosa e irregular, a exposição propõe uma experiência insular, no qual conversam cronologias, linguagens, parcerias, modos de fazer e operar em distintos sistemas, ao transgredir polaridades e evocar contaminações políticas e sociais. Arquipélagos que são autônomos, mas formam um grande corpo entre fragmentos que demandam novas arqueologias e leituras. Do poema de Carlos Drummond de Andrade de 1954 retiramos uma frase que sintetiza em muito as práticas de Antonio Bandeira, o gesto afetivo, a sedução certeira, o aprender fazendo e a esperança no caminhar que se anuncia na frase: Amar se aprende amando.

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